REFORMA DO ENSINO MÉDIO PARTE 2/3: A RETIRADA DE DIREITOS TRABALHISTAS DE TRABALHADORAS/ES DA EDUCAÇÃO.

Como já vimos na primeira parte desta série de publicações acerca da Reforma do Ensino Médio, a necessária resposta da burguesia à crise do capitalismo é a precarização da vida da classe trabalhadora. Tal resposta é marcada, sobretudo, pela retirada de direitos; pela intensificação da exploração do trabalho; pela rapinagem do Estado, com o ataque aos direitos sociais, como educação, saúde, cultura, saneamento, habitação, alimentação, etc., e pelo sequestro dos investimentos públicos.

É com este enfoque que abordaremos esta segunda parte da análise relativa à Reforma do Ensino Médio, agora mais centrados na perspectiva das/os trabalhadoras/es da Educação.

Um dos pontos mais brutais da famigerada Reforma do Ensino Médio é a “legalização da precarização”. Por que? Bem, a grade curricular anterior à Reforma possuía a obrigatoriedade do trato pedagógico de todas as disciplinas, o que pressupunha a existência nas escolas de professoras/es formadas/os especificamente nessas disciplinas. Dessa forma, a ausência de professoras/es das disciplinas, por mais que fosse um dado concreto, era uma ilegalidade, o que gerava abertura para mecanismos de pressão pela realização de concurso para a contratação de mais profissionais.

Entretanto, essa situação se modifica radicalmente após a Reforma. Como já vimos, um dos aspectos centrais da “nova” organização curricular é o fim das disciplinas e o trabalho por “área de conhecimentos”. Vamos relembrar: em linhas gerais, isso significa que não haverá mais a obrigatoriedade do ensino na escola de conhecimentos de todas as disciplinas, mas um conjunto de “competências” superficiais (práticas, atitudes e valores) de uma grande área de conhecimento.

Consequentemente, a escola não precisará mais de professoras de geografia ou professores de história, e por aí vai, pois, para o trabalho pedagógico, será necessário apenas que a professora seja formada em alguma/qualquer disciplina daquelas que compõem uma determinada área de conhecimento. É o fim da obrigatoriedade de contratação/concurso para professoras/es de todas as disciplinas. E a carência de professoras/es, em vez de uma “ilegalidade”, se tornará até mesmo desejável, para ocorrer um trabalho supostamente “integrado ou flexível”.

Em suma, antes da Reforma, a ausência de professoras/es de todas as disciplinas seria uma das facetas da precarização da educação pública, pois se entendia a necessidade de ter especialistas devidamente formadas/os em todos os campos de conhecimento. Agora, tal cenário se torna algo bom, já que o papel da escola é o trabalho com “competências práticas e comportamentos”, o que “qualquer pessoa pode fazer”.

Outro ponto importante na retirada de direitos de trabalhadoras/es da educação é a redução brutal da carga horária obrigatória que a juventude possui na escola. Antes da Reforma, a juventude teria que passar 800 horas anuais (2400 horas em 3 anos de Ensino Médio) na escola. Com a Reforma do Ensino Médio, apesar de uma carga horária anual de 1000 horas (3000 horas em 3 anos de Ensino Médio), a obrigatoriedade cai para 600 horas anuais ou 1800 horas em 3 anos (Formação Geral Básica oferecida obrigatoriamente na própria escola), enquanto as outras 400 horas anuais ou 1200 horas trienais serão cumpridas por meio de Itinerários Formativos, que podem ser cumpridas à distância, ou mesmo em “instituições parceiras”, geralmente privadas.

Ora, se haverá estudantes por menos tempo na escola, a consequência direta disso é a menor necessidade de profissionais contratados/as: isso inclui pessoal de alimentação, limpeza, manutenção, disciplina, apoio administrativo e pedagógico, não afeta somente professoras/es como se poderia pensar. Isso não implica apenas em uma menor contratação de profissionais, mas também em menor investimento em infraestrutura e alimentação de estudantes, por exemplo.

Os Itinerários Formativos, segundo a Reforma do Ensino Médio e as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, devem ser oferecidos “de acordo com as possibilidades do sistema de ensino” e com a obrigatoriedade de “mais de um por município”.

Recordemos as consequências disso: 1 – aquilo que pode ser oferecido nos Itinerários em termos de disciplinas, projetos, etc., será apenas o que for possível mediante as condições infraestruturais da escola (quadras, laboratórios, pátios, biblioteca, quando existirem), assim como de profissionais disponíveis. Ou seja, não há a obrigatoriedade de, por exemplo, ter professoras/es formadas/os em diversas áreas, já que o Itinerário oferecido na escola é aquilo que “for possível” – voltamos à “legalização da precarização”; 2 – se um município só tiver dois Itinerários em todas as suas escolas, haverá professoras/es que não se encaixarão neles, sendo muitas vezes forçados a se mudar de município ou se submeter a lecionar aula de “competências” para as quais não possuem formação. Independente do que ocorra, o certo é que as/os professoras/es estão cada vez mais sujeitas/os a toda sorte de assédio para garantir sua permanência nas escolas e, no limite, nos municípios onde se encontram e para onde estruturaram suas vidas e vidas de suas famílias, sob risco de inúmeros prejuízos.

Além disso, como a quantidade de profissionais necessários/as para manter a escola em funcionamento será cada vez menor, obviamente, pensando na luta de classes, o poder de barganha e de luta da classe trabalhadora será menor nos enfrentamentos. Os/as profissionais podem ficar cada vez mais frágeis em situações de assédio, pois os riscos de transferência compulsória e redistribuições aleatórias aumentam.

Por exemplo, é quase um consenso entre docentes que o famigerado “projeto de vida” é um engodo. Todavia, enquanto ele é alçado à condição de um componente curricular obrigatório, presente em todos os anos do Ensino Médio, todas as demais disciplinas “perdem carga horária”. Inclusive, deixam de ser ministradas em determinados anos do Ensino Médio, tornando-se uma opção de sobrevivência para o/a professor/a não ser transferido/a de escola. Ou seja, por mais que o/a professor/a não concorde com o projeto de vida, e com a Reforma do Ensino Médio propriamente dita, muitas vezes atuar nessa seara será uma questão de sobrevivência.

O último e dramático ponto que vamos abordar neste texto é a implementação do absurdo “notório saber” para a contratação de docentes. Em linhas gerais, o “notório saber” é uma espécie de reconhecimento de “saberes e competências” de profissionais de algum ramo técnico para que possam lecionar em cursos e disciplinas de caráter técnico-profissionalizante no “Novo Ensino Médio”.

Vamos pensar nas implicações disso para a escola. Em primeiro lugar, há a “legalização do bico”, ou seja, como vivemos uma crise enorme, que afeta todos os segmentos da vida, retira direitos, precariza o trabalho, lecionar sem que haja a devida formação, como maneira de sobreviver, torna-se uma opção interessante. Assim, pessoas sem a formação necessária terão seus “saberes e competências” certificados por instituições de procedência duvidosa e ficarão aptas a lecionarem nas escolas, precarizando o processo educativo, o que não significa culpabilizá-las por tentarem sobreviver, muito pelo contrário.

O segundo aspecto é a forma de contratação desses/as profissionais. Já vivemos em um contexto de contratação de professores/as por licitação de menor custo, “professor uber”, e toda sorte de precarizações que envolvem contratos temporários sem direitos trabalhistas, sem vínculos formais. A contratação de docentes pelo “notório saber”, de forma precarizada, vai ampliar a formação de uma cisão na categoria: concursados/as x temporários/as, ou até mesmo terceirizados/as. Tendo em vista que o grau de segurança de temporários/as e terceirizados/as no emprego é infinitamente menor, a sua capacidade de contestação diminui, sua sujeição a assédios aumenta, e, como um todo, enfraquece a capacidade de mobilização das trabalhadoras/es da educação. É um processo aprofundado de divisão da classe por meio da precarização, que obstrui os processos de luta e mobilização.

Indo além, apesar de pensarmos em termos de disciplinas “técnicas” para a ocupação de profissionais oriundos/as do notório saber, sabemos que não ficará apenas nisso. Por exemplo, qual o notório saber que é necessário para ministrar aulas em um Itinerário técnico de empreendedorismo? Não sabemos, já que não sabemos inclusive o que seria uma formação técnica em empreendedorismo, joga-se com o esvaziamento curricular a fim de que se possa fazer qualquer coisa que se deseje.

Igualmente, os Itinerários técnicos são compostos por eletivas que não necessariamente compreendem o aspecto profissionalizante. O que isso significa? É possível deslocar competências da Formação Geral Básica para o Itinerário Técnico e ter alguém não formado/a naquela área ministrando as aulas. Por exemplo, num Itinerário de Empreendedorismo, é possível ter uma aula de “Matemática Empreendedora”, que não será ministrada por uma professora de Matemática, mas alguém sem qualquer formação pedagógica, reconhecida/o pelo notório saber. Isto é, aumentará a quantidade de professoras/es contratadas/os de forma precária, sem formação na área, além de ampliar a exploração da cisão entre a classe trabalhadora no campo da educação.

Em linhas gerais, podemos ver que, se os impactos sociais da Reforma do Ensino Médio para a juventude estudante da classe trabalhadora são nefastos, eles não são menos piores para o conjunto de trabalhadoras/es da educação pública. Por meio de um profundo rearranjo curricular, a Reforma torna desnecessária a contratação de trabalhadoras/es da educação, em especial de professoras/es. Haverá uma brutal redução de investimentos e estrutura, além, é claro, de contratação e concursos de trabalhadoras/es; esses/as profissionais estarão cada vez mais sujeitos/as a casos de assédio e perseguição; por fim, a cereja do bolo é o “notório saber” que expande e agrava o quadro já existente de contratações e vagas precárias de trabalho na escola, terceirizações, além de promover uma divisão na classe, enfraquecendo as suas lutas e organização.

Matheus Rufino Castro – Professor do Colégio Pedro II, militante do MEP SINASEFE e do PCB – célula Educação Federal RJ

Gabriel Rodrigues Daumas Marques – Professor do Instituto Federal Fluminense, militante do MEP SINASEFE e do PCB – célula Educação Federal RJ