REFORMA DO ENSINO MÉDIO PARTE 3/3: A PRIVATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA COMO CERNE DO “NOVO ENSINO MÉDIO”.

Aqui, abordaremos o último texto da série que programamos para analisar as consequências da Reforma do Ensino Médio para a classe trabalhadora, assim como buscar a compreensão das condições postas para a nossa luta, no que diz respeito ao enfrentamento a esta contrarreforma.

O último aspecto que gostaríamos de analisar mais a fundo é a relação do “Novo Ensino Médio” com a privatização da educação pública, que não é um movimento recente, muito menos que se inicia com a Reforma do Ensino Médio. Já há, em andamento, uma série de mecanismos de privatização da educação pública e de transferência de verba pública para a iniciativa privada: as bolsas estudantis em detrimento da construção de instituições de educação pública (FIES; PROUNI; mais recentemente, as bolsas para a matrícula em creches privadas; as propostas de vouchers escolares; e as escolas Charter); a aquisição de materiais didáticos privados, como ocorre no próprio Programa Nacional do Livro Didático, que alimenta as grandes editoras privadas, em vez de estimular e dar condições de trabalho para que os/as próprias profissionais das redes públicas produzam seus materiais; as Parcerias Público-Privadas como um todo, e, especialmente com organizações como Instituto Ayrton Senna e Fundação Roberto Marinho, para aquisições de materiais didáticos extremamente precárias e de baixíssima qualidade, além de “cursos de capacitação” para trabalhadoras/es da educação; e a transferência da gestão de escolas públicas para a iniciativa privada. Por fim, gostaríamos de destacar a ausência de parcerias com setores produtores de agricultura familiar e limpa, como o MST, para fornecimento de alimentação escolar em prol da celebração de contratos com empresas de procedência duvidosa, geralmente apadrinhadas por políticos da região onde se situa a instituição escolar.

Ora, mas se a privatização já está em andamento, o que a Reforma do Ensino Médio traz de novo? “O Novo Ensino Médio” explicita a possibilidade de subordinação da organização curricular da escola aos interesses privados, por meio da instituição dos Itinerários Formativos (que já vimos na primeira seção desta sequência de textos – http://unidadeclassista.org.br/geral/reforma-do-ensino-medio-parte-1-3-desmistificando-a-falacia-do-direito-a-escolha/). A Resolução 03 do CNE, que trata das novas Diretrizes Curriculares do Ensino Médio, diz o seguinte: “Para garantir a oferta de diferentes itinerários formativos, podem ser estabelecidas parcerias entre diferentes instituições de ensino, desde que sejam previamente credenciadas pelos sistemas de ensino, podendo os órgãos normativos em conjunto atuarem como harmonizador dos critérios para credenciamento”.

Isto é, sob o pretexto de garantir uma maior diversidade na oferta de Itinerários, o que já vimos que não existirá, já que a obrigação de oferta de Itinerários Formativos distintos é de “mais de um por município”, abre-se a possibilidade que eles sejam ofertados por instituições privadas, por meio das famigeradas “parcerias”. Além desta possibilidade aberta, outra consequência possível (que tem ampla relação com a parte 2 das nossas reflexões – http://unidadeclassista.org.br/artigos/reforma-do-ensino-medio-parte-2-3-a-retirada-de-direitos-trabalhistas-de-trabalhadoras-es-da-educacao/), que pode ser multiplicada em instituições, é a adoção de editais para docentes voluntários. Usando a argumentação falaciosa dos(as) educadores(as) ganharem experiência pedagógica, governantes e administrações escolares podem apelar para uma espécie de “Amigos da Escola”, por meio deste voluntariado, para cobrir a sobrecarga de trabalho docente, enquanto cada vez menos abrem-se vagas oriundas de concursos públicos. No caso do setor administrativo, a situação já tem ocorrido, com a extinção de profissões e a consequente terceirização de áreas como segurança, limpeza e alimentação.

Retomando aos famigerados itinerários formativos, garante-se que quase metade da carga horária e grade curricular da juventude da classe trabalhadora sejam ofertadas pela iniciativa privada, o que, como podemos imaginar, pode significar uma transferência de recursos, no mínimo, proporcionais. O que isso significa? Se a instituição privada vai arcar com, no mínimo, 40% da jornada estudantil, não é impossível supormos, que ela pode vir a receber, no mínimo, 40% dos recursos públicos que seriam destinados à escola pública. Abrem-se, ainda mais, as janelas para a apropriação do fundo público por parte da iniciativa privada.

Todavia, esse quadro se mostra ainda mais preocupante, quando observamos que os Itinerários Formativos podem ser compostos por: “aulas, cursos, estágios, oficinas, trabalho supervisionado, atividades de extensão, pesquisa de campo, iniciação científica, aprendizagem profissional, participação em trabalhos voluntários e demais atividades com intencionalidade pedagógica orientadas pelos docentes, assim como podem ser realizadas na forma presencial – mediada ou não por tecnologia – ou à distância, inclusive mediante regime de parceria com instituições previamente credenciadas pelo sistema de ensino”, segundo a própria Resolução 03/2018.

O trecho acima nos mostra que, até mesmo trabalhos voluntários regulamentados por essas instituições privadas, podem ser contabilizados como oferta de grade horária, desde que garantida uma “intencionalidade pedagógica”, que não quer dizer efetivamente nada, ou, como dizem: “o papel aceita tudo”.

Esse processo de privatização do ensino médio acaba provocando um enfraquecimento da formação, que é entregue de bandeja para as instituições privadas. Além disso, o currículo acaba sendo esvaziado; e a autonomia da proposta pedagógica construída pelos profissionais de educação em conjunto com a comunidade escolar fica cada vez mais comprometida. Portanto, a privatização da escola pública acaba ressignificando a sua função social na busca pela formação crítica e questionadora dos trabalhadores como maneira de emancipação humana. E transformando a educação pública em mercadoria valiosa aos interesses da classe dominante, que se apropria dos recursos públicos em detrimento dos interesses da classe trabalhadora.

A própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC) vem ao encontro com esse processo de precarização da formação e deve ser analisada como a intenção de se impor, na força da lei, um currículo que é baseado na pedagogia das competências socioemocionais (nova roupagem dada à pedagogia das competências).

A BNCC apresenta de forma autoritária a legislação educacional, sua única forma de fundamentação teórica, desconsiderando toda a pesquisa e produção científica na área da educação. Toda a sua fundamentação teórica tem como referência a pedagogia das competências e a força da lei, obrigando todo o sistema educacional a incorporar o currículo – que deve estar a serviço dos exames externos e de larga escala, como o ENEM e instrumentos como o próprio IDEB, que buscam mensurar seu modelo de qualidade educacional baseado na lógica dos resultados quantitativos.

Outro ponto importante é que essas atividades podem ocorrer à distância, não há a obrigatoriedade nem mesmo de essas instituições privadas ofertarem suas instalações para a presença de estudantes. Assim, essa carga horária pode ser cumprida pela aquisição de uma apostila, como o Instituto Ayrton Senna e Fundação Roberto Marinho já realizaram em diversas gestões no Estado do Rio de Janeiro. Pode haver a aquisição de tablets e aplicativos junto à iniciativa privada, como houve durante o período de ensino remoto em decorrência da pandemia. É um passo a mais, um baita passo, rumo à total desregulamentação da oferta da educação, sob o pretexto de uma modernização e diversificação da oferta de Itinerários para a juventude.

O que está concretamente posto a partir da implementação do “Novo Ensino Médio” é abertura de novos flancos para o processo de conversão da educação em uma simples mercadoria, a ampliação de seu papel para acumulação de capital, além da transferência, ainda maior, do controle sobre os currículos e o trabalho escolar como um todo.

É papel do conjunto dos educadores e das educadoras comprometidos(as) com a Educação Pública o fomento dessas discussões que apresentamos ao longo desta série. Precisamos envolver o corpo discente e as comunidades das regiões, alertando sobre os perigos contidos nesta Reforma do Ensino Médio, enfrentando as sorridentes propagandas veiculadas pelo Ministério da Educação, em horário nobre. Essas discussões e reflexões precisam, ainda, ir além de quem atua na Educação Pública. O enfrentamento ao Novo Ensino Médio é tarefa da classe trabalhadora brasileira, que se preocupa com um futuro digno para a juventude, já demasiadamente atacada pelas recentes contrarreformas da Previdência e Trabalhista e pela Emenda Constitucional que impõe o Teto de Gastos.

Matheus Rufino Castro – Professor do Colégio Pedro II, militante do MEP SINASEFE e do PCB – célula Educação Federal RJ

Gabriel Rodrigues Daumas Marques – Professor do Instituto Federal Fluminense, militante do MEP SINASEFE e do PCB – célula Educação Federal RJ

Elielsom Oliveira dos Santos – Professor do Instituto Nacional de Educação de Surdos,  militante do MEP SINASEFE e do PCB – célula Educação Federal RJ