REFORMA DO ENSINO MÉDIO – PARTE 1/3: DESMISTIFICANDO A FALÁCIA DO DIREITO À ESCOLHA.
Nas últimas semanas, temos acompanhado uma série de propagandas do Ministério da Educação, a fim de promover seu Novo Ensino Médio. Como trabalhadores/as da Educação, é fundamental que analisemos o que se apresenta por trás de discursos rasos e sorrisos bonitos, nos instrumentalizando para organizar a juventude e a classe trabalhadora para resistir ao conjunto de ataques, apontar melhores cenários para a Educação e lutar para a concretização de uma realidade diferente da desenhada pela classe dominante. Deste modo, iniciamos aqui uma série de discussões e reflexões acerca do Ensino Médio e suas consequências, dividida em três momentos.
Com a agudização da crise do capitalismo a partir de 2008, intensificada no Brasil, – por ser um país periférico, de capitalismo dependente – a classe dominante brasileira, a burguesia, deve dar respostas para se manter no domínio da sociedade, ainda que as consequências para o resto da população sejam dramáticas, como podemos vivenciar agora na pandemia.
O capitalismo é uma forma de produzir a vida a partir da seguinte lógica: lucrar hoje para lucrar ainda mais amanhã, independente dos custos sociais – e até mesmo naturais – dessa forma irracional de organizar a sociedade. Para isso, desemprego em massa, retirada de direitos, subemprego e vagas cada vez mais precarizadas, desinvestimento público, esgotamento dos recursos naturais, tudo isso é visto como um “mal necessário”, ou até mesmo desejável, em prol da acumulação de riquezas nas mãos da burguesia, que é o ÚNICO objetivo do capitalismo.
Só que, como convencer as pessoas, em especial da classe trabalhadora, que elas devem viver uma vida cada vez mais miserável, desprovida de direitos e possibilidades, para que a burguesia possa lucrar mais a cada dia e fazer com que elas achem isso natural ou mesmo bom? Bem, uma dessas maneiras está justamente na Reforma do Ensino Médio. Por que?
A Reforma do Ensino Médio foi aprovada a toque de caixa, contra a vontade de estudantes e trabalhadores e trabalhadoras da Educação (lembram-se das milhares de escolas ocupadas contra a Reforma do Ensino Médio em 2016?), tem como um de seus pilares a formação dos filhos e filhas da classe trabalhadora para esta vida miserável. Como? A partir da falácia de que estudantes poderão escolher aquilo que estudarão.
A “justificativa” utilizada para aprovação da Reforma do Ensino Médio pelo Governo Temer e pelo conglomerado empresarial que o apoiou (Fundação Roberto Marinho, Instituto Ayrton Senna, além do famigerado “Todos pela Educação”) é que a juventude abandonava a escola. Em sua lógica de argumentação, desconsideram as condições de vida, a necessidade de trabalhar e contribuir no sustento de sua casa, as condições precárias da educação pública, atacando e classificando as escolas como “desinteressantes”, “teóricas” etc. Em resumo: a burguesia alega que a educação é “chata” e, por isso, a juventude abandona a educação.
Logo, qual a solução para este problema? Tornar a educação “interessante”. E como fazer isso? Garantir um suposto “protagonismo juvenil”, em que a juventude teria o “direito a escolher” aquilo que estudaria na escola. Afinal de contas, em que consiste esse direito à escolha? É muito simples. A Reforma do Ensino Médio simplesmente pega o currículo das escolas públicas e faz uma redução BRUTAL da carga horária das disciplinas, exceto Matemática e Língua Portuguesa (Filosofia, Biologia, Química, Educação Física, etc.), a fim de que a carga horária “gerada” a partir dessa redução possa ser utilizada pelo(a) estudante para “escolher o que estudará”. Contudo, isso tem vários pontos dramáticos para a formação da juventude.
Primeiro: além dessa redução de carga horária, que obviamente gera perdas para a juventude, ainda há a diluição destas disciplinas em áreas do conhecimento (um conjunto de competências de disciplinas afins – História, Sociologia, Filosofia e Geografia computam UMA área do conhecimento, por exemplo), isto é, retira a obrigatoriedade de, mesmo com essa caga horária reduzida, o/a estudante ter aula da disciplina específica, para que tenha aula de competências dessas áreas.
O que é uma competência para a burguesia? São habilidades de caráter prático, com conhecimentos superficiais, e um desenvolvimento focado, quase que exclusivo, de valores/atitudes/comportamentos que fazem com que a trabalhadora seja eficiente, útil, engajada e PRINCIPALMENTE não questione/critique suas condições de vida e trabalho.
Logo, mesmo com a POUCA carga horária disciplinar que restou para a juventude, entendendo a disciplina escolar como espaço de acesso aos conhecimentos científicos mais relevantes produzidos pela humanidade, haverá uma limitação deste acesso, já que a escola deverá focar seu trabalho na adequação de comportamentos, que façam com que a juventude se torne uma mão de obra mais barata, mais eficiente e, acima de tudo, obediente e dócil.
Segundo: e a nova carga horária gerada? Deve ser oferecida na forma de “Itinerários Formativos”, de caráter complementar à carga horária da Formação Geral Básica vista acima. Esses Itinerários podem ser compostos por disciplinas, projetos extracurriculares, laboratórios, e, acreditem se quiserem, até trabalhos voluntários. Teoricamente, o direito à escolha será exercido com a juventude “optando” por algum Itinerário Formativo existente em sua escola, ou na rede estadual.
Mas, na prática, como isso funciona? A Lei da Reforma do Ensino Médio diz o seguinte: “O currículo do Ensino Médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme […] a possibilidade dos sistemas de ensino”. Ora, a oferta desses itinerários, apesar de uma suposta variedade que daria a possibilidade de escolha para a juventude, é limitada àquilo que a escolha pode oferecer em termos de infraestrutura (salas de aulas, laboratórios, etc.), corpo técnico e docente (quantidade de professores e professoras de determinada disciplina, quantidade de funcionários/as de manutenção, apoio pedagógico, etc.).
Como assim? Sabemos as condições precárias da escola pública, da falta de concursos, da ausência de recursos – quadro potencializado com o Teto de Gastos e com as tentativas de ataques por meio da PEC 32/2020 (contrarreforma administrativa). Então, se uma rede estadual não faz concursos para docentes e há poucos docentes de História e poucas docentes de Química, os governos estaduais podem simplesmente privar a juventude dos conhecimentos dessas disciplinas. Dessa forma, o primeiro ponto é que a Reforma do Ensino Médio legitima, por meio de uma mudança curricular, a premissa burguesa de redução brutal de investimentos na educação pública, tornando desnecessária a contratação de trabalhadores e trabalhadoras da educação a partir dessa restrição curricular, com a retirada da obrigatoriedade do ensino de todas as disciplinas.
A Resolução nº 3, de 21 de novembro de 2018 do CNE, em seu artigo 12, diz o seguinte: “Os sistemas de ensino devem garantir a oferta de mais de um itinerário formativo em cada município, em áreas distintas”. Isto significa que as escolas estaduais localizadas em um mesmo município somente terão a obrigação de oferecer, no limite, DOIS tipos de Itinerários distintos. Aqui, há um complemento do que vimos acima: as supostas diversidade e escolha são uma falácia, já que em um município inteiro é possível haver apenas DOIS tipos de Itinerário Formativo. Se não há diversidade de Itinerários em uma escola, não há escolha, é simples assim, pois, a juventude teria que estudar longe, talvez em outro município, para poder estudar aquilo que gostaria.
Terceiro e último, mas não menos importante: os Itinerários têm um outro ponto agravante, para não dizer dramático: a inclusão na grade horária de disciplinas voltadas exclusivamente para o “comportamento” e formação moral da juventude, os famosos “projetos de vida”.
O Projeto de Vida nada mais é que a inclusão na escola, na forma de uma disciplina oficial, de um código de valores burgueses que têm o propósito de naturalizar as condições precárias e miseráveis de vida da classe trabalhadora, evitar quaisquer tipos de questionamentos, além de estimular ao último grau o individualismo. Enquanto são promovidas contrarreformas como a da Previdência e a Trabalhista, com apoio da mídia hegemônica, promove-se nas instituições escolares uma aula de: “como se virar em uma sociedade sem empregos, sem direitos”, colocando toda a responsabilidade dos problemas sociais sobre a juventude. Ou seja, se você, estudante, não tem emprego, a culpa é sua, que não construiu bem o seu projeto de vida, não aprendendo com a perspectiva empreendedora ou não tendo se esforçado tanto para merecer o sucesso.
É a radicalização da meritocracia, da culpabilização e criminalização de juventude trabalhadora, periférica, que, em teoria, terá todas as condições e conhecimentos necessários para ascender socialmente, para “vencer na vida”.
Com isso, podemos chamar a Reforma do Ensino Médio de um ajuste brutal no nível educacional aos interesses e necessidades da burguesia brasileira. É a tentativa mais perversa de retirar da classe trabalhadora a menor chance de refletir, questionar e transformar a realidade, transformando a escola em um centro exclusivo de preparação moral da juventude e de sua responsabilização pelos grandes problemas sociais que nos assolam.
Matheus Rufino Castro – Professor do Colégio Pedro II, militante do MEP SINASEFE e do PCB – célula Educação Federal RJ
Gabriel Rodrigues Daumas Marques – Professor do Instituto Federal Fluminense, militante do MEP SINASEFE e do PCB – célula Educação Federal RJ