Crise do Capital, Contrarreforma e a Luta pela Educação

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As crises do capital são recorrentes ao longo da sua história. Desde a formação de um mercado global, no início do século XIX, houve mais de vinte crises econômicas internacionais. Tais acontecimentos, portanto, não são meros acidentes de percurso no processo de acumulação capitalista. Ao contrário, sendo inerentes a este processo, podem ser explicadas com base em determinadas leis gerais que permitem, inclusive, verificar uma espécie de regularidade cíclica e periódica. Contudo, parafraseando Heráclito de Éfeso, não é possível se banhar duas vezes no mesmo rio. Ou seja, a cada nova crise, o mundo encontra-se em um momento diferente da anterior.

Cada depressão apresenta elementos específicos, seja na forma como se manifesta, seja na combinação com os aspectos econômicos, políticos e sociais próprios de cada conjuntura. As mais cruciais estão na base de importantes mudanças operadas nos processos produtivos, na modernização tecnológica, na configuração do Estado, no (des)equilíbrio de forças da luta de classes, na conformação do imperialismo e diversos outros aspectos relacionados ao movimento de acumulação de capital.

O famigerado crash de 1929, por exemplo, desabonou a crença na capacidade de autorregulação do mercado, corroendo os pilares de sustentação do laissez-faire econômico e criando as condições para o advento de novos padrões de regulação estatal – necessários para assegurar a estabilidade e fazer face ao espectro comunista. Já a crise dos anos 1970 revelou o esgotamento da cartilha fordista-keynesiana, impelindo os capitalistas a uma feroz cruzada contra os direitos sociais e trabalhistas constituídos ao longo de três décadas. A ávida busca pela recuperação das taxas de lucro desencadeou uma monumental contraofensiva burguesa global, enquanto o bloco socialista paulatinamente perdia força.

A readequação tática do Ocidente na segunda metade da Guerra Fria implicou em um novo papel para a educação. O Banco Mundial passou a operar de forma mais direta e específica na área, em consonância com o deslocamento do eixo desenvolvimentista para o binômio pobreza/segurança no alicerce das políticas para o chamado Terceiro Mundo. Era importante aprimorar o uso de mecanismos extramilitares, notadamente a educação, para refrear povos potencialmente sensíveis ao comunismo e “resguardar a estabilidade do mundo ocidental”.

A extinção da URSS em 1991 foi um importante marco no processo que consolidou a globalização neoliberal e abriu caminho para a radicalização da contraofensiva burguesa no mundo. O impacto deste abalo em cada país foi desigual, em função de suas particularidades históricas, sociais, políticas etc. No Brasil, a luta contra a ditadura empresarial militar decadente produziu uma ascensão das mobilizações de massas entre as décadas de 1970 e 1980, com destaque para o movimento estudantil e, principalmente, operário. Nessa delicada, “lenta, gradual e segura abertura”, foi criado o Partido dos Trabalhadores. Todavia, à medida que amadurecia a transição institucional de volta à forma “democrática” de dominação burguesa no país, estreitava-se a janela local de resistência à avalanche mundial sobre a classe trabalhadora.

Após a grave crise do final dos anos 1980, a já citada dissolução soviética – maior experiência alternativa ao mundo capitalista da História – e a pandemia neoliberal na década de 1990, chegou-se a anunciar o “fim das ideologias”. O êxito do processo contrarrevolucionário do século XX produziu as condições objetivas e subjetivas para a o embotamento do movimento operário e popular em todos os quadrantes. A tragédia proletária internacional não apenas adiou as perspectivas de superação do capitalismo como carcomeu o gume revolucionário de variadas organizações classistas. Diante deste quadro, as sementes do amoldamento à ordem tinham terrenos férteis à disposição para germinar e dar frutos, enquanto secava o solo das sementes anticapitalistas.

O PT não fugiu a essa regra. Seu movimento transformista foi fortalecido e acelerado na virada da década de 1980 para a década de 1990, quando o partido ingressou em uma nova fase, marcada, sobretudo, por alianças com facções burguesas e pelo aprofundamento do viés anticomunista presente desde sua fundação. Os efeitos são perceptíveis em diversas frentes de atuação do Partido dos Trabalhadores, entre elas a educação.

Nos primeiros anos após a sua fundação, o PT posicionava-se radicalmente contrário à mercantilização das necessidades humanas e considerava a lógica privada, orientada pelo lucro, incompatível com a garantia de direitos sociais. Logo, defendia a estatização progressiva da educação e outros setores essenciais. Em meados dos anos 1980, o PT declarava que seus governos não gastariam recursos públicos em incentivos ou facilidades legais e fiscais para as escolas privadas, exceto instituições sem fins lucrativos e sob controle popular. Além disso, identificava a educação pública, universal e de qualidade como uma bandeira importante na luta pelo socialismo, já que, embora compatível, em tese, com o desenvolvimento capitalista, a burguesia dificilmente cederia. Em 1989, o PT propunha que, em dez anos, a educação no Brasil fosse oferecida exclusivamente pela rede pública.

A partir de 1990, as resoluções políticas petistas passam a discutir a associar a educação a bandeiras “novas”: a descentralização do Estado, a maior eficiência da máquina pública, a integração ao mercado de trabalho, o crescimento com distribuição de renda, a criação de mercado interno de massas, dentre outras. Além disso, o foco da política educacional desloca-se da disputa entre público e privado para a oferta de “educação para todos”, sem discutir que educação seria essa. Nas eleições de 1994, o material de campanha de Lula convidou toda a nação a se mobilizar pela educação, inclusive o empresariado.

Essa foi a tônica de seu governo, iniciado oito anos depois. O empresariado não apenas aceitou o convite como teve incentivo o bastante para comandar o “milagre” da expansão do ensino privado: “educação para todos”, desde que cada vez mais vendida pelo oligopólio empresarial da certificação em massa. Ao mesmo tempo, o empresariamento também logrou avançar a passos largos sobre o setor público, progressivamente submetido a padrões de gestão privada, com currículos voltados para o mercado, avaliações externas de larga escala, rankings, “parcerias”, cursos pagos etc.

Em 2013, segunda metade do primeiro governo Dilma, o descontentamento das massas com o custo de vida nas cidades, a má qualidade dos serviços públicos e o ethos político dominante explodiu nas chamadas Jornadas de Junho. Incapaz de realizar uma guinada brusca no percurso até então trilhado, Dilma respondeu com iniciativas para frear as manifestações populares e preservar a governabilidade via pacto pelo alto, em vez de valer-se dos protestos para levar adiante uma agenda progressista e enfrentar a maioria conservadora do Congresso Nacional apoiando-se na pressão das ruas.

Ao contrário, Dilma aumentou as concessões aos tradicionais aliados e renovou seu compromisso com a agenda empresarial na expectativa de assim tentar proteger-se da instabilidade aberta. No campo da educação, isso ficou claro com as manobras petistas para aprovar o Plano Nacional de Educação 2014-2024 ao gosto do Movimento Todos Pela Educação. Durante a campanha para a reeleição em 2014, Dilma defendeu uma “Reforma do Ensino Médio” para padronizar e enxugar o currículo nacional.

Após uma vitória apertada contra Aécio Neves (PSDB), apostou na tentativa de mostrar ao mercado financeiro que tinha condições, tanto quanto o candidato derrotado nas urnas, de implementar um “ajuste fiscal”, controlar os movimentos populares e retirar direitos sociais – ao contrário do que prometera durante as eleições. Em termos de educação, mais uma vez na contramão das lutas sindicais e estudantis em curso no país, 2015 foi marcado pelo corte de verbas federais, pela publicação de um documento elitista e descolado da pauta histórica dos movimentos da classe trabalhadora em prol da educação pública, “Pátria Educadora”, e pelo processo de elaboração da Base Nacional Comum Curricular conforme os padrões exigidos pelos chamados reformadores empresariais da educação.

O golpe parlamentar que depôs Dilma aos 31 dias de agosto de 2016 marcou o trágico desfecho do ciclo “democrático-popular” em Brasília, com o requinte de um processo de impeachment aberto por um presidente da Câmara que mais tarde viria a ser preso. A conciliação de classes desenvolvida em mais de treze anos no Palácio do Planalto só era possível enquanto houvesse crescimento econômico. A aguda crise internacional comprometeu as condições materiais de funcionamento desta estratégia política. Assim sendo, em uma conjuntura de acirramento da polarização política, o governo petista aprofundou as medidas impopulares na expectativa de manter a confiança da classe dominante e conservar as alianças fisiológicas.

Todavia, ao agir assim apenas aumentou seu desgaste ante a classe trabalhadora e as massas em geral, perdendo a moeda de troca da qual passou a se valer para sustentar pactos com as oligarquias. Deste modo, a decadência do PT foi ideologicamente associada a um fracasso de toda a esquerda brasileira, quiçá latino-americana. Surgiu o caldo de cultura necessário para a realização de grandes manifestações de rua contra o governo, conduzidas de forma diligente por novos movimentos e velhos partidos de direita e com o apoio contundente do oligopólio midiático, além da contribuição decisiva de setores do judiciário, que entraram mais explicitamente em cena mobilizando todos os meios ao seu alcance para enterrar definitivamente o governo Dilma.

O governo Temer tem acelerado e radicalizado a agenda reacionária em diversas frentes, valendo-se dos caminhos abertos por seus antecessores no Palácio do Planalto. Sua posição diante das ocupações estudantis e a Medida Provisória da Contrarreforma do Ensino Médio, além da PEC que congela os gastos do governo por vinte anos e o anúncio das Contrarreformas Trabalhista e da Previdência mostram ao que vieram o ilegítimo presidente e seu séquito: realizar rápidos e brutais ataques contra os direitos sociais do povo brasileiro. Diante disso, os profissionais da educação são chamados a se posicionar: se render e assistir passivos o desmonte da educação pública, no bojo de uma ação maior de desmantelamento das conquistas populares do século XX, ou se entenderem como trabalhadores e intensificar a luta contra a mercantilização das necessidades humanas, a construção de um projeto de educação para além do capital e a defesa dos direitos históricos do conjunto da classe.

 

Publicado originalmente em https://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=797:2017-02-08-16-13-13&catid=3:temas-em-debate