PRIVATIZAÇÃO DAS REFINARIAS BRASILEIRAS: UMA ESTRATÉGIA ANTINACIONAL E ANTIPOPULAR
Gustavo Marun – Diretor do Sindipetro-RJ e FNP, conselheiro da AEPET e militante da Unidade Classista
Luis Eduardo Fernandes – Professor de História
Desde a famigerada “Operação Lava Jato”, consolidou-se uma perspectiva de gestão exclusivamente privada da Petrobrás, isto é, o lucro imediato para acionistas e o aumento do seu valor de mercado como os principais determinantes. Esses determinantes muitas vezes entram em choque com a própria saúde financeira da empresa e o fortalecimento de qualquer vislumbre da Petrobrás voltar a ser um instrumento que impulsione o desenvolvimento econômico, social e cultural do país.
Longe de nos propormos a realizar um balanço da nova estratégia privatista da Petrobrás, nos últimos 6 anos, nos deteremos nesse pequeno texto como a política de privatização das refinarias se relaciona com o atual caos socioeconômico sentido pela maioria da sociedade brasileira.
Abordemos primeiramente o ponto de vista estratégico nacional. Estamos tratando da intenção de entregar 8 de nossas 13 refinarias, ou cerca de 50% de nossa capacidade produtiva de combustíveis e derivados do petróleo. Ou seja, produtos com valor agregado muito superior ao petróleo cru (que se está priorizando a produção e cuja destinação se pretende prioritariamente para a exportação). Toda essa capacidade industrial instalada, com sua complexidade intrínseca ao processo de refino, deriva de um necessário domínio tecnocientífico, cujo desenvolvimento se dá em boa parte em nosso país. Por outro lado, toda a imprescindível manutenção e otimização contínuas, das instalações e deste processo produtivo, impulsionam ainda mais o desenvolvimento do nosso conhecimento, sobretudo através das pesquisas em universidades, via de regra as públicas.
Além disso, a cadeia de benefícios não se restringe ao meio acadêmico, pois preserva também para nosso povo os empregos gerados por esta importante atividade produtiva. Empregos de mais valor, já que exigem maior formação.
O que está em jogo, a rigor, é a soberania energética nacional, conquista tão cara aos países que se pretendem verdadeiramente independentes. Entregar 50% de nossa capacidade de refino significa por a perder em definitivo o controle dos preços dos combustíveis e gás de cozinha, delegar a agentes cartelizados do mercado a definição do valor cobrado por estes derivados. Quem vai sofrer é toda população. A começar pelos profissionais autônomos que lidam com transporte de cargas e de passageiros. Mas também todas as famílias brasileiras, seja pelo consumo doméstico do gás de cozinha, seja pelo impacto do componente do frete (diretamente ligado ao preço do diesel) em praticamente todos os artigos de consumo, gerando potencialmente uma inflação exorbitante.
Um dos grandes riscos a serem enfrentados também é o desabastecimento destes combustíveis, uma vez que o critério para fazer chegar a cada canto do país estes itens essenciais passa a ser a rentabilidade, e não mais a necessidade energética das pessoas.
A contragosto, façamos um exercício hipotético de abstrair o papel indutor na economia nacional e na distribuição mais justa da renda petroleira da Petrobrás, considerando-a apenas como mais uma empresa de mercado, concepção à qual o pensamento liberal recorre costumeiramente. Ainda assim, mesmo do ponto de vista meramente empresarial, abrir mão da atividade de refino (e distribuição) caracterizaria uma manobra de alto risco, pois significaria a concentração em apenas parte dos elos da cadeia produtiva do petróleo (sobretudo a Exploração e Produção). Esse risco aumenta sobremaneira num cenário como o atual, em que há fortes indícios de que já podemos ter passado do pico da descoberta de reservas de petróleo, fato que gera uma instabilidade futura, com possíveis guerras, embargos, medidas protecionistas, cartelização, transição de matriz energética e a própria escassez decorrente do esgotamento gradativo deste recurso basilar da economia contemporânea. Tudo isso significa incerteza e oscilação fora de controle da cotação do petróleo, dos seus derivados e dos serviços associados a essa atividade num horizonte futuro. Diversificar o domínio das atividades produtivas, garantindo a integridade de toda a cadeia, é a chave para preservar a segurança de sustentabilidade econômica de uma empresa de petróleo. Não por acaso, todas as petrolíferas de porte compatível com a Petrobrás são completamente verticalizadas, não abrindo mão de seus parques de refino. Esse fato se explica facilmente pelo simples levantamento de ROCE (Retorno de Capital Empregado) dos diferentes segmentos da indústria do petróleo: Tomando como exemplo a ExxonMobil em 2019, enquanto para o E&P essa taxa era de 7,9%, para o refino era de 23,3% [1]! Já para a concorrente Total, em 2018, o ROCE do E&P foi de 9,2%, enquanto o do refino foi de 31,2% [2]! Enquanto todos os concorrentes fazem a verticalização, nossos supostos exímios gestores seguem a cartilha de cabeça para baixo!
Ademais, dadas as características não flexíveis das instalações no país, dos gasodutos estabelecidos e da logística associada a esses parques, a privatização destes não significaria o fim de um suposto monopólio. Ao contrário, consistiria em passar este suposto monopólio do controle estatal para o privado, estrangeiro e cartelizado.
Com toda boa vontade do mundo, esqueçamos as dimensões estratégicas, tanto nacional quanto empresarial. Abordemos agora tão somente a questão financeira imediata. Vejamos, muito se diz sobre uma necessidade de quebra de um suposto monopólio da Petrobrás no mercado de refino brasileiro. Aqui cabem alguns apontamentos. Em primeiro lugar, não é papel da Petrobrás funcionar como agência reguladora, se encarregando de arbitrar um mercado no qual ela mesma atua. Seria patético imaginar a Coca-cola ou a Google, por exemplo, se preocuparem com o fato de estarem com muita participação no mercado e por essa razão buscarem ceder suas participações de mercado às concorrentes. Em segundo, o monopólio caiu em 1997, e desde então nenhuma petrolífera quis aportar recursos de vulto para construir parques de refino no Brasil. Argumenta-se que apesar do monopólio de direito ter sido quebrado, persiste o monopólio de fato, uma vez que a Petrobrás detém a quase totalidade das instalações em território nacional, portanto não havendo concorrência. Aqui há uma confusão, provavelmente intencional. A experiência prática demonstrou o quão desastrosa tem sido a política de preços de paridade de importação (PPI), ancorada na flutuação da cotação internacional do barril de petróleo, em dólar, adotada pela Petrobrás nos últimos anos. Perdemos rapidamente cerca de 20% de fatia de mercado. A pergunta que fica é: como podemos ter perdido fatia de mercado se somos monopolistas? A resposta é simples: o fato de não haver concorrência no refino no território do Brasil não significa que não haja concorrência no mercado brasileiro. As refinarias estrangeiras (sobretudo as dos EUA) são nossas concorrentes, e isso se demonstrou quando tiveram viabilizada a importação de seus combustíveis através da alta de preço. E é este o ponto crítico, baseado no critério meramente financista. A afirmação de que a elevação excessiva dos preços de combustíveis reflete em otimização lucrativa é uma falácia. A verdade é que o preço praticado ultrapassou o ponto ótimo, pois estando acima do custo das refinarias dos EUA já acrescidos de frete, internação, seguro e impostos, passou a viabilizar a importação destes derivados, que inundaram rapidamente nosso mercado, forçando nossas refinarias a operarem com 20% a 25% de ociosidade, pois não encontravam mais o mesmo nível de consumo de sua produção. Encontramos aqui um caso raro, beirando o surrealismo, de uma empresa estabelecer um preço que facilita a concorrência. Um dumping às avessas! Não é de se estranhar vindo de um presidente anterior da Petrobrás que dizia trabalhar para a concorrência e o atual que alega que seu sonho é privatizá-la. Tal desvario não encontra paralelo em qualquer comando de empresa em qualquer mercado mundial. O raciocínio sui generis desenvolvido é que é necessário facilitar a concorrência para que os preços possam cair. Mas para tal, é necessário ELEVAR os preços de modo a viabilizar a concorrência! Ao fim e ao cabo, uma vez privatizado o setor, a tendência é os preços se elevarem ainda mais, ao passo que enquanto havia um controle estatal dos preços, ao contrário, eles já se mantinham em um patamar mais baixo.
Um mínimo de razão joga por terra os critérios adotados na PPI. A formação de preços de suas mercadorias, seja aqui, nos EUA ou na China, se dá a partir do custo de produção destas na sua cadeia produtiva, acrescidos de uma margem para o ganho na venda. Uma estatal partir de preços mais altos praticados pelos concorrentes é algo inaceitável, pois penaliza absurdamente os consumidores para facilitar tão somente os acionistas e a concorrência.
A PPI é uma medida de protecionismo ao contrário. Em vez de proteger o Brasil e sua população de ataques especulativos, protege os especuladores para drenarem nossos recursos sem necessidade de grandes investimentos para competir com a Petrobrás. A tal mamata na verdade está amamentando grupos monopolistas privados com as riquezas de nosso patrimônio público e estatal e dos bolsos de todos que consomem, direta ou indiretamente, gás de cozinha e combustíveis.
A rigor, estamos diante de um caso de venda casada, quando se vincula a privatização das refinarias à política de preços estabelecida. É esta política que dá garantia de lucratividade estratosférica aos potenciais compradores, sendo o elemento atrativo e portanto condição para a venda destes ativos. Logo, para impedir a devastação de nossa economia e o sacrifício de toda população a partir da privatização das refinarias, é imperativo desmontarmos a política de preços estabelecida, subordinada aos interesses dos agentes privados e estrangeiros do mercado. É urgente o resgate da intervenção estatal na definição dos preços, no sentido de fazê-los baixar.
Não podemos deixar de mencionar que este aventureiro desfazimento de patrimônio estratégico coloca em xeque até mesmo nossa soberania militar. Não por acaso, a produção e distribuição de combustíveis é elemento crucial para qualquer nação que se pretende capaz de proteger seu território. Isso pelo simples fato de também os veículos militares, sejam terrestres, aéreos ou marítimos, todos dependerem também de combustíveis. Afinal, uma das principais perspectivas de análise das Grandes Guerras é justamente a corrida por combustíveis fósseis. Pois no atual governo, paradoxalmente, se não houver mudanças dos rumos, as FFAA podem sair na foto da História como fiadoras para vergonhosamente inviabilizar nossa ação militar ao entregar a capacidade produtiva de combustíveis a capitais de nações estrangeiras.
Do ponto de vista social, a privatização de refinarias e a nova política de preços atrelada ao mercado internacional gera dividendos para os acionistas estrangeiros, contudo acaba por gerar mais pobreza e miséria no país. A alta dos combustíveis contribui para o aumento dos custos de produção das mercadorias e que, por sua vez, está diretamente relacionada com a espiral inflacionária que corrói os salários dos trabalhadores e encarece itens da cesta básica.
Em recente levantamento, trazido pelo jornal El País, 70% dos moradores de favelas no Brasil não possuem dinheiro suficiente para comprar comida durante a atual pandemia. Na última semana, o Banco Central, sucumbindo a pressões do mercado financeiro, aumentou em 0,75% a taxa de juros Selic, medida que gerou debates entre progressistas do campo heterodoxo da economia.
Para alguns, o aumento da Selic poderia inibir a crescente desvalorização do real e, consequentemente, baratear a importação de alimentos ou direcionar a produção de carnes, grãos e frutas para o mercado interno. A medida pode servir ou não como um paliativo, no entanto é importante salientar as raízes estruturais da atual economia política da fome no Brasil que está na total desregulamentação das cadeias de abastecimento e dos capitais, a emergência de uma política fiscal reacionária e a atual estratégia privatista da Petrobrás.
Como último elemento de análise, consideremos a dimensão jurídica. Chegou a se criar expectativa com a liminar concedida em ADI pelo ministro Ricardo Lewandowski, que exigia licitação e autorização legislativa para alienações de ativos de estatais. A solução encontrada pelos privatistas, chancelada pelo STF, foi digna de realismo fantástico: Primeiro o próprio STF autorizou privatizações de subsidiárias, depois simplesmente a gestão passou a desmembrar as refinarias buscando as caracterizar como subsidiárias para pôr seu plano de entrega por partes em marcha. É como se um sujeito, estando seguro dentro de uma jaula num mar de tubarões, passasse a ter seus membros esquartejados e entregues aos predadores. E o fato de só não passar a cabeça entre as grades e esta ficar preservada servisse de argumento para tranquilização.
A privatização das refinarias conforme pretendida é parte de uma estratégia autossabotadora, antinacional e antipopular grosseira. Um verdadeiro crime de lesa-pátria, que parece que se dará com o supremo, com a caserna e com tudo!
*2: https://www.total.com/sites/default/files/atoms/files/4q18-results.pdf Página 13.