Os sindicatos de resultados e a flexibilização disfarçada
A chamada reforma sindical apresentada pelo governo Lula tem a mesma lógica e os mesmos objetivos da proposta defendida por FHC, em sua inconclusa agenda neoliberal: a flexibilização dos direitos trabalhistas.
Como se verá, a reforma não se limita a regulamentar a estrutura sindical. É uma tentativa de promover importantes modificações na legislação trabalhista, sobretudo no que se refere à solução dos conflitos entre o capital e o trabalho. Trata-se de um conjunto de medidas que, uma vez transformadas em lei, tornarão desnecessária a chamada reforma trabalhista, pois estará consagrada entre nós a flexibilização para baixo dos direitos dos trabalhadores, que foram conquistados às custas de muita luta e sacrifício.
Em verdade, essa reforma é um dos 17 pontos da Carta de Intenções, firmada pelo governo Lula com o FMI, em 21 de novembro de 2003.
Preside a reforma sindical um conceito – de natureza trabalhista e não sindical –, denominado “auto-composição dos conflitos entre o capital e o trabalho”, defendido ardorosamente por Francisco Dorneles que, quando Ministro do Trabalho de FHC, repetia sistematicamente que “o negociado deve prevalecer sobre o legislado”. Este é um dos objetivos da reforma: o afastamento do Estado do processo de solução dos conflitos trabalhistas, esvaziando-se o papel da Justiça do Trabalho e das Delegacias Regionais do Trabalho.
É a adesão à tese da “livre” negociação entre o capital e o trabalho, como se os dois lados estivessem em igualdade de condições para negociar, ainda mais num quadro em que o desemprego, o acirramento da competitividade empresarial e o avanço tecnológico, dentre outros fatores, enfraquecem o poder de mobilização do movimento sindical, em âmbito mundial.
Na lógica da manutenção da conservadora política econômica de FHC, o governo Lula submete-se à pressão do “mercado” e aos ditames do FMI, aderindo à tese de que é necessário flexibilizar os direitos trabalhistas, para impulsionar a economia, gerar emprego e diminuir o chamado Custo Brasil.
Esta, aliás, é uma das maiores falácias da burguesia brasileira, até porque o Brasil tem um dos menores salários mínimos, mesmo se comparado com países da América Latina, e direitos trabalhistas e sociais inferiores aos praticados na grande maioria dos países capitalistas mais avançados. Além do mais, todas as experiências de flexibilização de direitos trabalhistas levadas a efeito em outros países não geraram emprego: só resultaram em mais acumulação de capital.
No caso brasileiro, trata-se de um retrocesso republicano, mesmo nos limites do Estado burguês, pois, desde as primeiras leis trabalhistas, está presente na nossa legislação a idéia da intervenção do Estado na proteção dos trabalhadores, frente ao poderio econômico do capital.
No que se refere à estrutura sindical, ao invés de representarem avanço para a classe trabalhadora, as reformas propostas pelo governo Lula significarão a mudança conservadora e cupulista do atual modelo e levarão à flexibilização para baixo dos direitos trabalhistas. O cronograma escolhido para a implantação das reformas é produto de um sofisticado oportunismo: primeiro a reforma sindical, depois a trabalhista.
A prioridade dessas reformas, num governo comprometido com os trabalhadores, deveria ser obviamente a reforma trabalhista, como estava previsto anteriormente. Não para flexibilizar direitos para baixo, mas pelo menos para assegurar recomposição salarial e geração de novos empregos. Afinal de contas, há cerca de dez anos os salários estão desindexados. Aliás, no primeiro ano de governo Lula, diminuiu a renda dos trabalhadores e cresceu o desemprego. No mesmo período, a maioria dos sindicatos não conseguiu sequer a reposição salarial pelo INPC.
Esperava-se, portanto, que o novo governo tomasse a iniciativa de apresentar algumas propostas, como redução da jornada de trabalho, fim das horas-extras e recomposição do poder aquisitivo dos salários.
Revelando claramente a inflexão conservadora do governo, alterou-se a cronologia original da agenda, para não desagradar ao “mercado” e, principalmente, evitar que os trabalhadores se mobilizassem por suas bandeiras de luta.
Começar as reformas pela estrutura sindical, além de evitar a tensão social do movimento de massas e a divisão da ampla e heterogênea base parlamentar do governo, limita o debate à cúpula sindical, já que os trabalhadores andam afastados de seus sindicatos e dificilmente se mobilizarão em torno de questões como o financiamento das entidades ou a polêmica sobre unicidade ou pluralismo sindical. Ainda assim, a reforma está sendo imposta de cima para baixo ao próprio movimento sindical, já que o debate é limitado à parte da cúpula das centrais sindicais.
Além do mais, não se trata da necessária reforma dos sindicatos, para torná-los fortes, unitários, classistas e enraizados nas massas para, depois, agendar a reforma trabalhista. Pelo contrário, trata-se, como veremos, de aniquilar a atual estrutura sindical, substituindo-a por uma outra, mais dócil, cupulista, economicista, estatal, dividida, moldada para a sustentação ao governo e a conciliação entre o capital e o trabalho, tendo como modelo o sindicalismo norte-americano.
A atual estrutura sindical, com todas as suas limitações, não pode ser responsabilizada pelo refluxo do movimento dos trabalhadores. As causas principais residem no desemprego, aprofundado pela manutenção da política econômica, e na degeneração de algumas entidades, notadamente a CUT, cujo processo de perda da identidade classista — que já vinha de sua filiação à CIOSL –, agravou-se no novo governo, em que passou a atuar como um organismo estatal, uma espécie de departamento de conciliação do Ministério do Trabalho.
Com esta mesma estrutura sindical limitada, o movimento sindical já jogou importante papel em defesa dos trabalhadores, como são exemplos os períodos que vão de 1958 a 1964 e de 1978 a 1985.
O mais grave da oportunista inversão da cronologia das reformas é uma manobra ainda mais ardilosa: a chamada “reforma sindical” não trata apenas da estrutura sindical, mas abrange todo o sistema de negociação e solução de conflitos entre o capital e o trabalho, do direito de greve ao poder normativo da Justiça do Trabalho, tudo na lógica da flexibilização para baixo dos direitos trabalhistas. Isto se dá através de hábil manipulação, para passar a impressão de que as mudanças atingem apenas a estrutura sindical.
Como dissemos, se a chamada reforma “sindical” for aprovada como está sendo proposta, não haverá necessidade da reforma “trabalhista” ou, quando muito, esta se limitará à discussão da lista de direitos atuais que poderão ou não ser objeto de flexibilização. E é bom deixar claro que qualquer mudança significará flexibilização para baixo (de interesse dos patrões), pois, para flexibilizar para cima (de interesse dos trabalhadores) não há necessidade de mudanças legais, pois isso sempre foi assegurado pela CLT, que estabelece patamares mínimos de direitos trabalhistas.
Por exemplo: a lei estabelece que as horas extras devem ser remuneradas com um adicional de, no mínimo, 50% sobre o valor da hora normal de trabalho. No entanto, vários sindicatos, ao longo de décadas, conquistaram percentuais superiores, numa flexibilização para cima. Hoje, é nulo qualquer acordo que preveja adicional inferior a 50%. No entanto, com a flexibilização para baixo, poder-se-á pactuar até que não haja qualquer percentual.
Outro aspecto importante da manobra é a forma de apresentação das propostas de reforma. Repetindo uma prática que está se transformando numa marca deste governo, as propostas são apresentadas como de iniciativa da sociedade. É a chamada “concertação”, estimulada por um governo que se pretende “acima das classes”, com a criação de Conselhos, Câmaras e Fóruns polipartites de aconselhamento. Dentro desta lógica, o governo apenas “encampa” as propostas que “vêm da sociedade”, como se o seu poder não fosse o predominante naquelas instâncias.
Este é o caso do chamado Fórum Nacional do Trabalho, que formulou as propostas, afinal “encampadas” pelo governo. O Fórum, tripartite, é formado por representantes do governo, dos trabalhadores (as centrais sindicais, com o peso preponderante da CUT, lá representada pelo seu campo majoritário e assessorada por agentes da CIOSL) e dos empregadores (confederações patronais, que sempre defenderam a flexibilização).
Outro absurdo é a questão da estrutura sindical ser discutida e deliberada num fórum tripartite, botando-se por terra uma das maiores conquistas da Constituição de 1988: a liberdade e a autonomia sindical frente ao Estado e aos patrões. A forma de organização e de sustentação financeira das entidades sindicais trabalhistas deveria ser tratada como um assunto exclusivo dos trabalhadores, assim como deve caber às empresas o direito de organizar suas entidades como lhes convier.
Analisaremos, a seguir, os principais aspectos da chamada reforma sindical que, no fundamental, é desfavorável aos trabalhadores e ao movimento sindical. Lembramos que a presente análise tem como referência os sindicatos de trabalhadores da iniciativa privada.