‘Conferência de Trabalho Decente termina de forma melancólica’
Leonardo Sakamoto
Brasília – A Conferência Nacional de Emprego e Trabalho Decente, realizada entre 8 e 11 de agosto, em Brasília, terminou aos trancos e barrancos. O fraco documento aprovado pela plenária final não traz avanços significativos no setor e, provavelmente, terá sua legitimidade questionada. A responsabilidade por isso reside não apenas na bancada dos empregadores que, vendo suas posições perderem apoio, retiraram-se das discussões no meio da conferência, mas dos outros setores envolvidos, incluindo governo federal e trabalhadores, que não investiram o que deveriam na organização do processo. Mesmo assim, a conferência está sendo vendida como um sucesso – o que está longe de ser verdade.
A Conferência tinha o objetivo de promover um grande debate sobre as políticas públicas de trabalho, emprego e proteção social, visando a construir uma Política Nacional de Emprego e Trabalho Decente.
A bancada de empregadores que participava da Conferência Nacional suspendeu sua participação nas plenárias de discussão e ameaçou deixar o encontro na tarde de sexta (10). Para tanto, reclamou que as regras não estariam sendo seguidas, que seus delegados estariam sendo tratados com agressividade pelos outros, que a estrutura oferecida era insuficiente para um evento de tamanhas proporções, que suas propostas estavam sendo sistematicamente boicotadas.
Na verdade, não havia boicote às suas propostas, mas a maior parte delas estava perdendo as votações. Do total de delegados, 30% é de trabalhadores, 30% representantes de governo, 30% de empregadores e 10% da sociedade civil. As propostas dos empregadores não contavam com apoio dos trabalhadores e da maior parte da bancada governamental e da sociedade civil. Não é possível dizer que essa composição foi uma surpresa, uma vez que isso ocorreu também em boa parte das conferências estaduais. Mas como agora estava chegando a hora de uma definição, os empregadores perceberam que perderiam. Optaram pelo que no futebol chamamos de “cai-cai” – parar o jogo, alegar um problema e ver o que acontece.
Todas as propostas que recebiam nos grupos de trabalho e nos eixos de discussão, pelo menos, 30% dos votos eram encaminhadas para a Plenária Final. Ou seja, bastava um dos três grupos principais fecharem posição sobre um tema, que ele seria considerado apto para a discussão final. Contudo, só iriam compor o documento formal da Conferência as propostas que tivessem mais de 50% dos votos dos delegados na Plenária Final. Se havia propostas que receberam o consenso entre as diferentes partes, também existia polêmica – como a que diz respeito à redução na jornada de trabalho para 40 horas semanais. Nesse caso, por exemplo, e considerando a configuração da Conferência, os empregadores tenderiam a perder.
O documento resultante não se tornaria lei, mas seria usado como referência para a aprovação destas.
A bancada de empregadores levou o seu descontentamento ao ministro do Trabalho, Brizola Neto. O medo da retirada dos empregadores de vez do debate, que poderia gerar o questionamento da legitimidade do encontro ou a diminuição de sua força, levou à costura de uma saída: representantes dos quatro grupos que fazem parte da Conferência passariam a madrugada discutindo uma agenda mínima, além de resgatar as propostas que já eram consensuais e haviam sido discutidas nos grupos de Trabalho na quinta (9). Os delegados presentes no evento foram informados que esse apanhado de propostas e costuras seriam retiradas de suas mãos, trabalhadas por esse grupo e levadas para votação no Plenário.
O que se seguiu foi uma grande confusão derivada da falta de organização, o que enterrou as grandes pretensões do evento. As centenas de delegados percebiam que alguma coisa estava errada, mas não tiveram acesso aos bastidores. Trago o que ocorreu abaixo, construído a partir de longas conversar com fontes que participaram do processo e da organização.
Primeiro, não houve a formação de uma comissão de delegados eleita para discutir esses consensos e essa pauta mínima. Na prática, a Comissão Organizadora Nacional, responsável por tocar a Conferência, composta por trabalhadores, empregadores, governo e sociedade civil, ficou a cargo desse processo. Ou seja, na tentativa de salvar o evento, substituíram-se as discussões em plenárias com centenas de delegados que haviam sido eleitos nas Conferências Estaduais ao longo de um ano por um reduzido grupo dos organizadores – que não haviam sido escolhido para decidir o que entra e o que sai. Muitos delegados reclamaram da pancada na democracia que isso significou.
Pelos discursos, parte das lideranças sindicais, de representantes de governo e de empregadores estava mais preocupada em garantir que a conferência fosse vista como um sucesso, citando o empenho da quantidade de pessoas envolvida até ali, do que resultasse em um documento que servisse realmente de base para a elaboração de uma política nacional de trabalho decente no país. O problema é que, contraditoriamente, o caminho tomado tornou desnecessária a própria conferência. Afinal de contas, para que um evento com a participação de delegados de todo o país, se uma pequena comissão de capital-trabalho-governo-ONGs criam o filtro final?
Foi divulgado, na manhã seguinte, que os representantes das quatro bancadas ficaram reunidos discutindo consensos e pautas mínimas até às 4h da manhã de sábado (11). Contudo, as coisas não ocorreram dessa forma. Da meia noite à 1h, os membros da comissão discutiram a sua metodologia de trabalho. Mais ou menos à 1h, imprimiu-se uma planilha com as propostas para serem analisadas.
Aí apareceu mais um problema decorrente da falta de organização. Verificou-se que relatórios dos grupos de trabalho de quinta-feira (que discutiram as 600 propostas produzidas pelas Conferências Estaduais) continham graves problemas. A maior parte dos relatores que produziram esses documentos não estavam treinados para tanto, muitos não sabiam relacionar o sistema de votação eletrônico aos temas que estavam sendo discutidos. O sistema para inclusão dos destques e das votações não funcionava direito. Quando propostas forma levadas à Plenária Final, verificou-se que parte das discussões produzidas nesses grupos foi perdida.
E por que não havia relatores treinados para tanto? Aqui é preciso fazer uma pausa e entender que governo, trabalhadores e empregadores, em determinado momento, passaram a não dar a devida importância à realização da Conferência. E como estamos falando de um processo tripartite, quando uma das pernas arrefece, as demais seguem também o caminho de distensão. Se uma das pernas começa a participar mais ativamente, as outras também correm, para não ficar para trás. Optou-se pelo círculo vicioso em detrimento do virtuoso.
Não houve dedicação suficiente, a começar pela administração do ex-ministro Carlos Lupi. Mas não apenas no governo. Uma prova da prioridade que a Conferência tinha na agenda das entidades é que os presidentes das principais centrais sindicais e das entidades patronais envolvidas não ficaram presentes ao longo do evento.
Da 1h às 4h, os assessores das instituições que tinham assento na Comissão Organizadora (porque a maior parte dos titulares já tinha ido embora) tentaram identificar o que era consenso dentro da maçaroca das péssimas relatorias (que, repito, não eram todas). A partir disso, foi gerada uma matriz com as propostas que, de acordo com o que envolvidos me relataram, não tinha confiabilidade nenhuma. Ressalte-se que não é possível dizer que os trabalhos da comissão não avançaram por má fé, mas por falta de competência e de poder de decisão. Ou seja, pessoas que estavam despreparadas para fazer esse trabalho e, ao mesmo tempo, assessores que não estavam empoderados para tomar decisões.
Na manhã seguinte, as centenas de delegados receberam a notícia de que metas consensuais haviam sido identificadas e que a agenda mínima de cada bancada delimitada. Observação importante: nesse momento, o regulamento da Conferência já não valia mais nada, uma vez que as propostas seriam escolhidas por grupos de trabalho e eixos de discussão – como disse anteriormente – e iriam para a Plenária final, com aprovação e derrota.
A bancada de delegados governamentais (federal, estaduais, municipais, distritais) reuniu-se na manhã do sábado. Os seus coordenadores apresentaram, então, uma pauta de propostas que seriam apresentadas às outras bancadas consideradas importantes para serem aprovadas. Entre os temas, estão a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (sobre a liberdade sindical), mudanças no imposto sindical, no banco de horas, na negociação coletiva, o interdito proibitório, criação de um marco regulatório para a terceirização, cotas e a ampliação da licença maternidade.
São tema importantes, é claro, mas pontos relevantes que dizem respeito aos direitos fundamentais no trabalho ficaram de fora da listinha, apesar de constarem de grande parte das metas discutidas nos grupos de trabalho e que, por não obterem consenso, caíram fora.
Às 12h, o governo sugeriu suas propostas na reunião da Comissão. Houve “acordo” (dependendo, é claro, do significado que você dá para a palavra acordo) em apenas três delas. Às 13h, as propostas teriam que ir a plenário. Mas aí o pau comeu solto dentro desse pequeno comitê. A (antidemocrática) ideia de jogar na mão desse grupo, tirando o poder dos delegados eleitos, era para destravar o processo e impedir que a Conferência implodisse após a chantagem de saída dos empregadores. Mas a falta de liderança fez com que o trabalho não fosse feito.
Não houve um trabalho minucioso de costura e de seleção de metas. Não houve tempo hábil para a discussão da agenda mínima de cada bancada. Não consenso sobre o que seria consenso.
Foi proposto que os membros da comissão retornassem à análise do caderno com as 600 propostas – base da Conferência Nacional, produzidas em debates pelo país ao longo de meses. Mas já era hora de começar a discussão na Plenária Final. Representantes da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) se retiraram da reunião. E, do jeito que estava, o conjunto das propostas, desorganizado e inacabado, foi à votação.
Os representantes dessa comissão foram à Plenária sem ter ideia do que aconteceria lá dentro. Estavam perdidos.
Começaram a dizer aos delegados presentes que a Conferência Nacional fora um sucesso, que alcançou muitos consensos. Apresentaram as propostas que consideraram consensuais e pediram aos delegados que estivessem de acordo, levantassem o crachá para aprová-las.
Alguns delegados de trabalhadores, que foram alijados do processo, começaram a reclamar. Pessoas que participaram dos debates nos grupos de trabalho na quinta-feira afirmaram que algumas das metas apresentadas não haviam alcançado o consenso na quinta, mas apareciam como consensuadas. Pediram a palavra. Mas a organização do evento não concedeu. Representantes de governos estaduais apontaram erros na formulação de algumas propostas, que desconsideraram debates feitos pelos delegados, mas também receberam a justificativa de que a comissão tinha noção disso, mas preferiu usar uma versão inicial para depois considerar os apontamentos. Em outras palavras, o que passou como consenso, não foi consenso necessariamente.
A bancada dos delegados dos empregadores não estava na Plenária Final. Informaram que estavam em uma sala ao lado e abertos ao diálogo, mas não participaram da votação das propostas, mesmo que parte desse quiproquó tenha ocorrido por conta da necessidade de mantê-los no processo. Os organizadores afirmam que os empregadores se mantiveram até o final na Conferência. O fato é que não endossaram com aprovação ou rejeição as propostas.
Quem estava no plenário não sabia no que estava votando. Aliás, menos pessoas do que o esperado preenchiam as cadeiras do auditório principal após a derrota do Brasil para o México no final olímpica do futebol. E isso não apenas pela ausência dos empregadores, mas também pelo fato de toda a confusão gerada ter dispersado parte dos delegados de outras bancadas.
Do ponto de vista de pessoas envolvidas no processo que pude ouvir, a legitimidade desse documento final pode ser facilmente questionada. Isso, é claro, se alguém se der ao trabalho para tanto. Os organizadores afirmaram ad nauseam que a quantidade de consensos alcançados foi muito significativa. Mas qual a qualidade desses consensos? Quantidade não é o principal porque há muitos pontos irrelevantes. Coisas redundantes, como a importância da geração de empregos verdes para a proteção do meio ambiente.
Por conta do cai-cai dos empregadores, buscou-se criar um processo de decisões consensuadas. Mas, de acordo com o seu regulamento original, a Conferência, desde o começo, não foi construída para tanto e sim para debates, votações, derrotas e vitórias de propostas. Fontes que acompanham o processo há mais de um ano afirmam que, desde o começo do processo, representantes de um setor queriam ganhar dos outros, e as regras foram construídas para possibilitar isso. Mas essas mesmas pessoas se perguntam: era essa a ideia? Ou o objetivo era construir um diálogo social?
E aqui se chega a um ponto importante: qual o objetivo da Conferência? Teoricamente, construir as bases para uma Política Nacional de Emprego e Trabalho Decente. Mas qual seria a utilidade e o objetivo dessa política e onde ela se encaixaria no contexto do debate capital-trabalho? Esse debate não foi travado à exaustão como era de se esperar. Diante disso, outra pergunta: qual deveria ser a natureza de uma Conferência Nacional para atender a essa necessidade? Seria no estilo das Conferências Nacionais de Direitos Humanos, com caráter de consulta popular, ou algo atendendo à Convenção 144 da Organização Internacional do Trabalho, que regula as consultas tripartites?
As indefinições presentes na concepção do processo fizeram com que ele demonstrasse uma estrutura frágil quando dele se demandou firmeza e resultado. Isso, aliado à incompetência, desorganização e ignorância que reinou em determinados processos levou a uma boa ideia praticamente se afogar na praia.
Internamente, a procura pelos culpados já começou. Um grupo culpa os empresários, seu cai-cai e a tentativa de melar a conferência. Outros dizem que a desorganização é culpa do governo. Falam até em sabotagem interna no PDT, afirmando que as disputas entre Brizola Neto e Carlos Lupi pelo comando do partido respingaram na Conferência. Há ainda os que dizem que os trabalhadores não se empenharam como deveriam e a ausência das direções e das presidências da maior parte das centrais ao longo dos debates e nas articulações seria uma prova disso.
Os números preliminares apontam que foram 383 delegados governamentais inscritos e 293 efetivamente credenciados para a Conferência Nacional; 364 delegados de trabalhadores inscritos e 320 credenciados; 389 delegados de empregadores inscritos e 315 credenciados; e 139 delegados da sociedade civil inscritos e 66 credenciados (no caso da sociedade civil, os credenciados foram menos da metade dos inscritos, uma vergonha). Incluindo observadores e convidados foram 1217 credenciados. Ou seja, muito dinheiro envolvido para trazer boa parte dessa gente de todos os lugares do país, alimentá-los e hospedá-lo, além do custo de fechar o Centro de Convenções Ulysses Guimarães e de toda a organização. Um custo-benefício que pode ser considerado alto demais.
O fato é que há uma dívida política que merece ser quitada com milhares de pessoas que participaram de conferências preparatórias por todo o país, discutindo os temas, e com outras dezenas que se desdobraram para organizar todo o processo. O caderno com 600 propostas, compilado por uma equipe da Universidade de Brasília com base nessas conferências merece, antes de mais nada, ser revisado – há reclamações de falhas graves, uma vez que teriam sido desconsideradas uma série de propostas válidas. Feito isso, esse apanhado (enriquecido pelos debates dos grupos de trabalho da Conferência Nacional) pode ser matéria-prima interessante para uma discussão sobre uma Política Nacional de Emprego e Trabalho Decente e sobre os avanços que podemos e queremos fazer nos próximos anos nessa área.
Avanços necessários se queremos aliar (minimamente) o crescimento econômico com dignidade e respeito ao trabalhador – coisa que a Conferência Nacional deixou a desejar por pensar demais no curto prazo de si mesma em detrimento do médio e longo prazo das mudanças sociais.
Em tempo: tive uma visão privilegiada pelo fato de ser delegado eleito pelo Estado de São Paulo por conta da Repórter Brasil, a organização que participo, atuar na defesa dos direitos dos trabalhadores. Com isso, conversei com muita gente dos quatro grupos que compõem a conferência (trabalhadores, empresários, governo e sociedade civil) e seus organizadores.