Citrosuco: mais um caso de trabalho escravo no Brasil. Entrevista especial com Renan Barbosa Amorim
Instituto Humanitas Unisinos
Ter o registro do ICMS cassado “é a consequência mais grave para quem utiliza mão de obra análoga ao trabalho escravo”, diz o auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego – MET.
“Tínhamos uma boa noção do que encontraríamos, porém não tínhamos dimensão da realidade, tanto que fomos surpreendidos pela situação que encontramos no local”, disse Renan Barbosa Amorim, auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, responsável pela fiscalização nos dois laranjais da Citrosuco. Uma das maiores indústrias de suco de laranja do país, a Citrosuco foi multada pelo Ministério do Trabalho e Emprego na última semana, por manter trabalhadores em condições de trabalho escravo nas Fazenda Água Sumida, em Botucatu, e Fazenda Graminha, em São Manoel, cidades na região centro-sul paulista. De acordo com Amorim, trabalhadores tiveram seus documentos retidos pela empresa e foram coagidos moralmente por causa de dívidas obtidas para poderem se manter no emprego.
A denúncia ao Ministério Público foi feita pelos próprios trabalhadores que, conforme explica o auditor fiscal na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, “vieram com promessas de salário e de transporte, que seria bancado pela empresa, e quando chegaram ao local de trabalho encontraram uma casa pequena, que serviu de alojamento para 26 pessoas. (…) A casa, para se ter uma noção, não tinha nem banheiros e eles tinham de procurar – conforme relatos –, lugar no mato para fazer as necessidades, ou seja, era um local extremamente precário”.
Segundo Amorim, “as empresas ainda são muito reticentes, e assumem a questão trabalhista como um custo a ser reduzido e isso toma uma proporção grande”. De acordo com ele, no caso da Citrosuco, “os encarregados de turma recebem por produção, então querem simplesmente que os funcionários deem o máximo de rendimento com o mínimo de custos. Ou seja, há um descaso com o trabalhador”. Para ele, os casos recorrentes de trabalho escravo em fazendas brasileiras estão diretamente ligados à falta de responsabilização penal. “Ainda não tivemos caso de alguém ser preso por trabalho escravo; conseguimos uma condenação por danos morais na esfera do Trabalho, algumas vezes a inclusão na lista suja das empresas”.
Renan Barbosa Amorim é auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE.
Confira a entrevista.
Foto de reporterbrasil.org.br
IHU On-Line – Como os órgãos públicos chegaram aos trabalhadores em situação de escravidão na Citrosuco? Foi uma fiscalização de rotina ou por meio de denúncia?
Renan Barbosa Amorim – Neste caso os próprios trabalhadores denunciaram a gravidade da situação, mas não com todos os detalhes. Tínhamos uma boa noção do que encontraríamos, porém não tínhamos dimensão da realidade, tanto que fomos surpreendidos pela situação que encontramos no local. Essas denúncias ocorrem normalmente quando alguém procura os órgãos do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE ou o Ministério Público – MP, mas no caso da Citrosuco, como a situação estava realmente complicada, os funcionários se dirigiram ao MP, que depois se dirigiu ao MTE para pedir apoio. Entre a denúncia e a fiscalização houve um espaço de apenas dois dias, sendo que a denúncia foi feita no dia 30 de junho e a fiscalização no dia 2 de julho de 2013.
IHU On-Line – O que caracteriza o trabalho escravo? A que violações dos direitos civis tal prática está vinculada?
Renan Barbosa Amorim – Existem duas convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que dispõem sobre o trabalho, e também existe o Código Penal Brasileiro. O artigo 149 define a condição análoga a trabalho escravo, o qual foi utilizado como referência na nossa fiscalização. O trabalho escravo é caracterizado pelo cerceamento da liberdade, que funciona de várias formas. A dívida é um exemplo: quando o empregador cria um fornecimento de bens e obriga os empregados a adquiri-los de forma que gera uma dívida impagável, trata-se de uma restrição indireta. Outra forma é a restrição da liberdade pela retenção de documentos, por exemplo, retém a Carteira de Trabalho ou de identidade impedindo que o trabalhador se locomova porque não tem documentos. Existe a restrição de liberdade mais direta, feita, por exemplo, por armamento ostensivo. Tem ainda as condições degradantes de trabalho e a jornada exaustiva, quando o excesso de atividades toma uma proporção tão grande que afronta a dignidade do trabalhador, acaba com as forças físicas e impede a reposição de energias.
IHU On-Line – Os trabalhadores desse caso estavam sendo submetidos a que tipo de constrangimentos?
Renan Barbosa Amorim – Primeiramente a retenção de documentos, pois a empresa desde a chegada deles reteve as carteiras de trabalhos. Em segundo, a questão da dívida, mas de uma forma indireta, pois o estabelecimento não era da Citrosuco. Porém, por meio da encarregada de turma desses trabalhadores que vieram colher laranjas, eles fizeram dívidas em um supermercado com o aval dessa pessoa, e chegou a um ponto em que não conseguiram pagar o que deviam. Isso é que se chama de coação moral, pois eles tinham uma dívida, sentem-se presos a ela e não podem sair. Por fim, trata-se de uma condição degradante, tendo em vista a condição degradante por conta do alojamento em péssimas condições – inabitável e sem a menor condição de permanência. A própria encarregada de turma que encontrou o local atestou em seu depoimento que não havia as mínimas condições.
Moradia
Um dos requisitos que caracteriza o trabalho escravo é o aliciamento. Os trabalhadores vieram com promessas de salário e de transporte que seria bancado pela empresa e quando chegaram ao local de trabalho encontraram uma casa pequena, que serviu de alojamento para 26 pessoas, que ficaram quase amontoados. A casa, para se ter uma noção, não tinha nem banheiros e eles tinham de procurar – conforme relatos –, lugar no mato para fazer as necessidades, ou seja, era um local extremamente precário. Depois de três meses, como eles viram que não havia a menor condição de ficar, procuraram outro local para morar, e adquiriram dívidas. Ocorre que quando chegamos, não conseguimos fiscalizar a primeira casa, mas os depoimentos, tanto da encarregada de turma quanto dos trabalhadores, comentaram a situação da casa onde estavam.
IHU On-Line – A empresa em questão é umas das gigantes do setor. Nesse sentido, as sanções impostas, multas e as possíveis condenações podem gerar algum impacto significativo nas atividades da empresa?
Renan Barbosa Amorim – Os autos de infrações do Ministério do Trabalho não têm impactos financeiros muito grandes. Só que por conta do trabalho escravo, as restrições são bem mais sérias, primeiro por conta da lista suja do MTE, que ao final do devido processo legal e do processo administrativo interno do MTE devem ter o nome inserido. Depois é que vão aparecer impactos mais fortes, como restrição a crédito. Especificamente em são Paulo existe uma lei estadual que proíbe as empresas condenadas por trabalho escravo a operarem por dez anos. Essa sim é a consequência mais grave, pois tem-se o registro do ICMS cassado e não podem operar. Esta é a consequência mais grave para quem utiliza mão de obra análoga ao trabalho escravo. Neste caso terminamos o relatório e encaminhamos às demais autoridades. Agora o MP deve entrar com uma ação neste sentido, para tentar a cassação do registro da Citrosuco.
IHU On-Line – A tática jurídica de utilizar um preposto como intermediador da contratação dos trabalhadores reduz a responsabilidade da empresa? Por quê?
Renan Barbosa Amorim – Normalmente não acontece isso porque ocorre a subordinação estrutural. Neste caso, porém, trata-se de flagrante, pois havia uma funcionária da Citrosuco, com registro CLT. Além disso, os empregados também foram registrados pela Citrosuco e trabalharam em fazendas da empresa. A ligação com a empresa é muito forte, não tem como alegar que era responsabilidade de terceiros.
Considerando outros casos, como postura da fiscalização, o que se busca é tentar identificar quem é o real beneficiário do trabalho escravo. A relação de emprego é um contrato que chamamos de objetivo, não depende da formalização. Nesse caso o responsável pelo trabalho é aquele que se beneficia do trabalho, seja ele empregador ou não.
IHU On-Line – Este ano o grupo gestor da companhia foi condenado a pagar R$ 400 milhões por condenações na Justiça Trabalhista devido a problemas de contratações terceirizadas. Como uma empresa com tal histórico pode estar em funcionamento?
Renan Barbosa Amorim – A questão é que no Brasil não atingimos a responsabilização no ponto mais forte destas empresas, que é o econômico. Estamos começando a fazer o trabalho que está engatinhando e começa ter bons resultados. Vemos outros problemas, por exemplo, o que antigamente era uma das principais complicações da extração da cana-de-açúcar, migrou para a questão da laranja. Há um problema muito sério de gestão e as empresas parecem não estar preocupadas com a gestão de seus trabalhadores.
IHU On-Line – Qual o maior desafio do trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, e Ministério Público do Trabalho – MPT, no sentido de fiscalizar e inibir a realização de trabalho escravo?
Renan Barbosa Amorim – Primeiro temos uma grande dificuldade que é a falta de estrutura. Precisamos brigar com o próprio ministério para poder trabalhar. Para ter uma ideia da situação, quando estávamos voltando de uma das fazendas em que estávamos fiscalizando, por volta das 22h30, fomos parados pela polícia porque o documento da viatura estava vencido. Se acontecer algum problema semelhante em Bauru não temos viatura e ficamos presos sem ter como trabalhar.
Postura das empresas
Além disso, vemos que as empresas ainda são muito reticentes, assumem a questão trabalhista como um custo a ser reduzido e isso toma uma proporção grande. Nesse caso da Citrosuco, os encarregados de turma recebem por produção, então querem simplesmente que os funcionários deem o máximo de rendimento com o mínimo de custos. Ou seja, há um descaso com o trabalhador. Outro problema é a responsabilização penal. Ainda não tivemos caso de alguém ser preso por trabalho escravo; conseguimos uma condenação por danos morais na esfera do Trabalho, algumas vezes a inclusão na lista suja das empresas. Fazemos esse trabalho na ponta, apesar de todas as dificuldades.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Renan Barbosa Amorim – O que mais preocupa é a estrutura do combate, porque a falta do mínimo de condições emperra muito nosso trabalho. Gostaríamos de aprofundar mais e fazer mais fiscalizações, mas o descaso do governo com a nossa atuação atrapalha demais o andamento das nossas tarefas. Sobra, no final das contas, para o trabalhador que busca as autoridades, e o que é difícil fica ainda pior nessa situação. Imagina pessoas totalmente abandonadas que tiveram de buscar o Ministério do Trabalho para buscarem seus direitos? A nossa maior dificuldade é conseguir trabalhar.