Camponeses salvadorenhos enfrentam Estados Unidos por sementes
mst.org.br
Sob um sol incandescente, entre um mar de mudas de milho recém-brotadas, Gladys Cortez mostra sua preocupação com o fim de seu emprego na cooperativa que produz sementes para o governo salvadorenho, caso os Estados Unidos consiga que suas empresas participem do negócio. “Aqui temos nossa fonte de renda para manter nossos filhos”, explicou a agricultora à IPS, enquanto realizava suas habituais tarefas na Cooperativa La Maroma, uma das produtoras de sementes, localizada no cantão La Noria, município de Jiquilisco, no departamento de Usulután.
O governo dos Estados Unidos, por meio de sua embaixadora em El Salvador, Mari Carmen Aponte, condiciona a entrega de um pacote de ajuda não reembolsável de US$ 277 milhões, o chamado Fundo do Milênio II, a que este país abra a compra de sementes certificadas para companhias norte-americanas. Excluí-las, disse a diplomata à imprensa local, viola cláusulas do Tratado de Livre Comércio entre Estados Unidos e a América Central – República Dominicana (Cafta RD), assinado por El Salvador em 2004.
Desde 2011, o governo salvadorenho compra anualmente de 18 produtores os 88 mil quintais (medida equivalente a 60 quilos) de semente de milho que anualmente distribui para semeadura a cerca de 400 mil camponeses, para reanimar o Plano de Agricultura Familiar. Anualmente entrega dez quilos de semente melhorada e 45 quilos de fertilizantes. Entre esses 18 produtores estão a cooperativa La Maroma e outras quatro da região de El Bajo Lempa, no sul de Usulatán.
Essas terras foram divididas e entregues a ex-combatentes da então guerrilheira Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), após os acordos de paz de 1992, que puseram fim a 12 anos de guerra civil, na qual morreram 75 mil pessoas. Foi o primeiro governo do FMLN, no poder desde 2009, que abriu a participação de produtores locais no negócio da semente certificada. A administração de Salvador Sánchez Cerén, ex-comandante guerrilheiro que chegou a Presidência em 1º de junho, mantém a relação com as cooperativas, mas também mostra disposição para as licitações incluírem companhias internacionais.
As sementes certificadas são variedades que oferecem melhor rendimento e reagem melhor aos efeitos adversos do clima. São resultado do cruzamento de material genético, mas sem modificá-lo, ao contrário das transgênicas. As cooperativas também produzem algumas sementes nativas, embora em menor escala. A qualidade do grão é monitorada e avaliada pelo Ministério da Agricultura, que em conjunto pagou US$ 25,9 milhões em 2013 pela aquisição de sementes, principalmente de milho e feijão, fundamentais na dieta salvadorenha.
Até que em 2011 foi aplicado um novo modelo, 70% do mercado era de uma subsidiária da gigante norte-americana da biotecnologia Monsanto, Sementes Cristiani Burkard. Desde então somaram-se outros atores, como as cooperativas, com sementes certificadas de melhor qualidade e preços mais competitivos.
A compra do ano passado foi por decreto do Executivo, aprovado pelo Congresso em dezembro de 2012, que na prática deixava fora as empresas dos Estados Unidos. A embaixada desse país exigiu uma licitação pública e “transparente”. Em janeiro de 2014, os legisladores aprovaram um novo decreto que permitiu um processo de licitação com participação das empresas internacionais. Mas o processo, realizado em abril, foi ganho pelos mesmos 18 produtores.
A embaixadora agora pressiona para uma licitação diferente, que favoreça suas empresas, em uma posição muito criticada por organizações sociais e produtores rurais, que em junho protestaram diante da embaixada. “A posição norte-americana é para promover as sementes da Monsanto”, afirmou à IPS o ambientalista Ricardo Navarro, se referindo à empresa líder mundial em sementes transgênicas, contra a qual há inúmeras mobilizações em países latino-americanos.
A embaixadora Aponte nunca mencionou a transnacional em seus argumentos, mas para Navarro “está implícito que ela se refere à Monsanto, a maior do setor, cuja filial local perdeu um mercado que considerava seu”. A embaixada não autorizou uma entrevista com o assessor econômico John Barret, solicitada pela IPS. Mas no dia 2 divulgou um comunicado à imprensa dizendo estar feliz pelo fato de o governo salvadorenho ter se comprometido a implantar “um mecanismo transparente, competitivo e de respeito” às leis nacionais e do Cafta nas futuras compras de sementes.
Por sua vez, a Monsanto se limitou a enviar à IPS um e-mail, assinado pelo porta-voz Tom Helscher, em que nega qualquer participação na campanha da embaixada. A disputa chegou a Washington. Dezesseis congressistas enviaram no dia 1º deste mês uma carta ao secretário de Estado, John Kerry, expressando sua preocupação pela pressão exercida pelo Escritório do Representante do Comércio (USTR), que impulsiona a campanha de sua embaixada em São Salvador.
Nathan Weller, diretor da EcoViva, uma organização norte-americana que trabalha com projetos de desenvolvimento no Bajo Lempa, disse à IPS que houve companhias dos Estados Unidos que ganharam contratos do governo salvadorenho, mas não em licitações públicas, mas por meio de compras diretas ou convite. Os dois mecanismos são legais, mas carecem da transparência exigida agora pela embaixada para as sementes.
Por exemplo, em 2009 e 2010 foi dado à Chevron Caribbean o fornecimento de combustível por contratação direta, no valor de US$ 340 mil e US$ 361, respectivamente, segundo informação do Ministério da Agricultura. Essas empresas “ofereceram um produto a um preço muito mais alto do que a concorrência, e, no entanto, o USTR não comentou isso”, disse Weller.
A semeadura de sementes, além do mais, promoveu fontes de emprego em uma região com muita pobreza. Na área rural, 43% das famílias vivem na pobreza, contra 29,9% dos urbanos, segundo a pesquisa anual do Ministério da Economia de 2013. “Além da geração de emprego, estamos evidenciado o potencial produtivo das cooperativas da área”, disse à IPS o dirigente camponês Juan Luna, coordenador do Programa Agrícola da Associação Mangle.
Gladys Cortez, que cuida das mudas de milho em La Maroma, é uma das beneficiadas com um emprego gerado pelo programa de sementes. “Além de termos trabalho, também recebemos mudas para plantarmos para nossa alimentação”, contou esta mulher de 36 anos que deve lidar sozinha com o cuidado de seus dois filhos, um adolescente de 17 e uma menina de 13 anos.
Junto a ela, meia centena de homens e mulheres trabalhavam em uma área de La Maroma. Quase todos usando camisas de manga longa e gorros ou sombreiros, para evitar queimaduras do sol, no dia em que a IPS visitou o lugar. Todos ganham US$ 5 por dia.
Só nesta área do Bajo Lempa, cerca de 15 mil camponeses dedicados ao cultivo do grão melhorado têm emprego, calculam os cooperativistas, por períodos mais longos do que nas semeaduras tradicionais, já que exige maior atenção e cuidado. “Não estamos ganhando muito, mas temos uma renda, o que é uma grande coisa para uma mãe sozinha como eu”, disse Cortez.