Acordo Coletivo Especial: um ‘neocorporativismo’. Entrevista especial com Andréia Galvão
“O sindicalismo combativo deixou de ser combativo quando assumiu uma postura propositiva. Prioriza a luta econômica e corporativa – e é bem sucedido nessa matéria – mas do ponto de vista político, não confronta o governo, nem o patronato”, constata a socióloga.
“O sindicalismo propositivo e ‘cidadão’ é frágil justamente por isto: porque substitui a legislação universal pela legislação focalizada ou pelo ‘contrato entre as partes’ e porque assume a prestação de serviços relegados pelo Estado: intermediação de mão de obra, qualificação profissional etc.” É a partir dessa declaração que a socióloga Andréia Galvão comenta a iniciativa do sindicato dos metalúrgicos do ABC, que propõe um Acordo Coletivo Especial – ACE. Na avaliação dela, o ACE “constitui a retomada dos projetos de prevalência do negociado sobre o legislado, pois autoriza os sindicatos a negociar com as empresas acordos coletivos cujas cláusulas derrogam a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT”.
Andréia Galvão, autora do livro Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 2007), critica o argumento de que o ACE “promove a valorização da negociação coletiva e estimula a organização no local de trabalho”. Para ela, a argumentação “desconsidera que as próprias empresas podem aceitar e, até mesmo, estimular a organização no local de trabalho caso vislumbrem a possibilidade de utilizar os comitês sindicais para negociar e rebaixar os direitos trabalhistas”. O ACE expressa um “neocorporativismo”, que tem como característica um “comportamento diferenciado e exclusivista dos trabalhadores de setores mais fortes e organizados, que se destacam de um coletivo mais amplo (no caso, a categoria profissional) em defesa de seus interesses específicos”, frisa.
Apesar de apontar a retomada das greves como um fator positivo do movimento sindical, a pesquisadora é enfática ao analisar a atuação sindical hoje. “O sindicalismo não luta efetivamente pela reversão do processo de flexibilização de direitos verificado nos anos 1990, não luta contra a lógica mercantil e individualizante propagada pelo neoliberalismo; assume a heterogeneização dos trabalhadores e a segmentação do mercado de trabalho como um dado e, com exceção da política de valorização do salário mínimo e da campanha pela redução da jornada para 40 horas semanais, não aproveita a conjuntura econômica favorável para pressionar o governo a consolidar e ampliar os direitos universais”, lamenta, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Andréia Galvão é graduada em Ciências Sociais pela Unicamp, possui mestrado em Ciência Política com a dissertação Participação e fragmentação: a prática sindical dos metalúrgicos do ABC nos anos 90, e doutorado em Ciências Sociais pela mesma universidade. Leciona no Departamento de Ciência Política da Unicamp, e é editora da revista Crítica Marxista.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o balanço que faz dos dois mandatos do governo Lula e da primeira metade do governo Dilma para o conjunto dos trabalhadores?
Andréia Galvão – Essa pergunta tem que ser colocada em perspectiva histórica para que possa ser respondida. Quando comparados aos governos que lhes precederam, isto é, aos governos Collor e FHC, que introduziram e consolidaram o neoliberalismo no Brasil, o balanço é positivo no que se refere aos indicadores do mercado de trabalho. Os governos do PT empreenderam uma política de valorização do salário mínimo; retomaram a contratação de funcionários públicos – especialmente através da criação e ampliação de universidades federais, que também aumentaram a oferta de vagas no ensino superior para os jovens –; promoveram medidas para aumentar o crédito – ainda que por mecanismos questionáveis, como o crédito consignado, que interfere no princípio da intangibilidade dos salários –; aumentaram o montante de recursos e de beneficiários de políticas sociais, como o programa Bolsa Família. Esse conjunto de medidas contribuiu para a redução do desemprego e da informalidade, e para que as negociações empreendidas pelos sindicatos resultassem em ganhos reais de salário e em acordos coletivos com cláusulas favoráveis aos trabalhadores, como mostram os dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese.
Diante da deterioração do mercado de trabalho e do combate aos direitos sociais e trabalhistas verificada na década de 1990, esses resultados não são desprezíveis e constituem uma das razões do apoio popular aos governos de Lula e Dilma. Mas, do ponto de vista dos direitos, os sinais são contraditórios: a defesa aberta da flexibilização de direitos deu lugar a uma defesa parcial e a uma reforma pontual da legislação trabalhista, voltada para públicos-alvo (primeiro emprego para jovens, contratação de serviços via “pessoa jurídica”, condições diferenciadas para trabalhadores de micro e pequenas empresas). Não se trata mais de uma medida geral, a exemplo de alterações no artigo 7o da Constituição ou da derrogação da lei pela negociação, apesar do recente projeto de Acordo Coletivo de Trabalho com Propósito Específico. Por outro lado, a terceirização continua a ser praticada, inclusive por órgãos governamentais; a reforma da previdência representou uma perda de direitos para os funcionários públicos, e as greves dos funcionários públicos recolocam em discussão propostas de limitação do direito de greve, o que produz impactos sociais e políticos negativos.
IHU On-Line – Para esse mesmo período, qual é o balanço que faz do movimento
sindical, das centrais sindicais?
Andréia Galvão – Essa pergunta também requer a consideração de uma série de elementos para evitar uma resposta maniqueísta, que se reduza às alternativas positivo ou negativo. O governo Lula produziu uma maior divisão organizativa das organizações sindicais de cúpula, algumas das quais criadas devido a discordâncias com a política do governo e com a posição assumida pela CUT nesse contexto; outras, para se aproveitar dos benefícios, sobretudo financeiros, assegurados pela lei de reconhecimento das centrais. Esse dinamismo organizativo, porém, foi acompanhado por um processo de acomodação política, uma vez que as seis centrais sindicais que alcançaram o índice de representatividade entre 2008 e 2011 (CUT, Força Sindical, UGT, CTB, Nova Central Sindical de Trabalhadores e CGTB) apoiavam o governo.
Esse sindicalismo participa de órgãos tripartites; de mesas de negociação com o governo e, até mesmo, de ministérios (basta lembrar a participação de ex-dirigentes da CUT e da Força no Ministério do Trabalho); dedica-se à defesa dos interesses imediatos dos trabalhadores, tarefa facilitada pelas condições econômicas mais favoráveis a que me referi acima, mas, a despeito de uma certa recuperação dos indicadores de greve, pouco mobiliza sua base. É um sindicalismo que, a meu ver, prioriza a ação institucional. O sindicalismo de oposição (representado fundamentalmente pela CSP-Conlutas e pelas duas organizações intituladas intersindicais), por sua vez, tem dificuldades para organizar e mobilizar os trabalhadores devido aos indicadores positivos do mercado de trabalho e à consequente popularidade do governo.
IHU On-Line – O sindicalismo combativo do ABC dá sinais de esgotamento? Há uma prioridade na pauta economicista e corporativista em detrimento a uma pauta que incorpore conteúdo político?
Andréia Galvão – O sindicalismo combativo deixou de ser combativo quando assumiu uma postura propositiva. Prioriza a luta econômica e corporativa – e é bem sucedido nessa matéria – mas do ponto de vista político, não confronta o governo, nem o patronato: limita-se a reivindicações viáveis e críticas pontuais, e, por substituir a perspectiva de classe por uma perspectiva de cidadania muito frágil, adota uma perspectiva reformista superficial e conservadora.
Não é que sua pauta não incorpore um conteúdo político. O conteúdo político é dado por aquilo que cabe no projeto neodesenvolvimentista do governo: um neodesenvolvimentismo que revaloriza o papel do Estado e do investimento público, mas que é profundamente marcado pelo neoliberalismo. Assim, o sindicalismo não luta efetivamente pela reversão do processo de flexibilização de direitos verificado nos anos 1990, não luta contra a lógica mercantil e individualizante propagada pelo neoliberalismo, assume a heterogeneização dos trabalhadores e a segmentação do mercado de trabalho como um dado e, com exceção da política de valorização do salário mínimo e da campanha pela redução da jornada para 40 horas semanais, não aproveita a conjuntura econômica favorável para pressionar o governo a consolidar e ampliar os direitos universais. O sindicalismo propositivo e “cidadão” é frágil justamente por isto: porque substitui a legislação universal pela legislação focalizada ou pelo “contrato entre as partes” e porque assume a prestação de serviços relegados pelo Estado: intermediação de mão de obra, qualificação profissional etc.
IHU On-Line – A que atribui a mudança no sindicalismo, que assume uma postura
mais negocial e menos confrontativa?
Andréia Galvão – Essa mudança vem se instituindo desde os anos 1990, devido a diversos fatores, dentre os quais gostaria de destacar dois: a intensificação dos processos de restruturação produtiva nas empresas e a vitória do projeto político neoliberal, contra o projeto democrático-popular então representado por Lula nas eleições de 1989. Essa derrota fez com que o PT e a CUT passassem por um processo de reconversão política e ideológica que levou ambas as organizações a assumir uma postura mais negociadora e a assimilar aspectos da ideologia neoliberal. Mas naquele momento a negociação esbarrava na oposição ao governo Collor e, mais intensamente, ao governo FHC. Com a vitória de Lula, essa perspectiva da negociação, da conciliação e da parceria entre capital e trabalho se aprofunda, já que o sindicalismo cutista passa a ter no governo um aliado.
IHU On-Line – Nesse contexto, como vê o Acordo Coletivo Especial – ACE, sugerido pelo sindicato dos metalúrgicos do ABC? Em que contexto esse acordo surge e por que ele é aceito por determinados sindicatos?
Andréia Galvão – O ACE constitui a retomada dos projetos de prevalência do negociado sobre o legislado, pois autoriza os sindicatos a negociar com as empresas acordos coletivos cujas cláusulas derrogam a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Para obter tal prerrogativa, os sindicatos devem demonstrar que representam mais da metade da categoria (em número de trabalhadores filiados) e manter um comitê sindical no interior da empresa com a qual pretendem negociar. Ora, segundo estimativas as mais otimistas, há 200 empresas com comitê sindical instalado em todo o país, o que mostra que apenas alguns sindicatos estariam em condições de se valer desse tipo de acordo. O sindicato dos metalúrgicos do ABC, que o elaborou, alega que o projeto promove a valorização da negociação coletiva e estimula a organização no local de trabalho. Esse argumento desconsidera que as próprias empresas podem aceitar e, até mesmo, estimular a organização no local de trabalho caso vislumbrem a possibilidade de utilizar os comitês sindicais para negociar e rebaixar os direitos trabalhistas. Ou seja, é grande o risco de precarização para os trabalhadores. Os sindicatos que defendem esse projeto são justamente aqueles que têm uma tradição de negociação estabelecida e força para eventualmente rever direitos que tenham sido negociados num contexto de crise. Mas e os demais?
IHU On-Line – Em que medida o Acordo Coletivo Especial – ACE aponta para um novo modelo de luta sindical?
Andréia Galvão – Não se trata exatamente de um novo modelo, uma vez que o sindicalismo propositivo vem sendo praticado desde o início da década de 1990, quando da assinatura dos primeiros acordos das câmaras setoriais no ABC. Esse sindicalismo constitui a expressão do neocorporativismo que, na tradição sindical brasileira, coexiste com o corporativismo estatal, na medida em que a unicidade sindical na base e as contribuições compulsórias garantidas por lei permanecem vigentes. O neocorporativismo exprime um comportamento diferenciado e exclusivista dos trabalhadores de setores mais fortes e organizados, que se destacam de um coletivo mais amplo (no caso, a categoria profissional) em defesa de seus interesses específicos. Consagra-se, dessa forma, a negociação por empresa, numa perspectiva de colaboração de classe.
IHU On-Line – Há novidades na luta sindical brasileira?
Andréia Galvão – Sim, há novidades. Destaco as greves em setores em que as condições de trabalho e a própria organização sindical são muito difíceis, como a construção civil; as greves deflagradas e mantidas a despeito da posição das lideranças, como as recentes greves dos professores das universidades federais, onde uma parte dos sindicatos é da base do Proifes, organização criada pelo governo Lula para se contrapor ao Andes.