A derrelição de Ícaro
Por Giovani Alves*
O termo “derrelição” ou “queda” na acepção existencialista, possui um sentido de destino irremediável. Mas, na verdade, o paradoxo de Ícaro não se trata de destino humano irremediável, como supõe o termo derrelicção, mas exprime o fetichismo salarial vigente no mundo histórico do capital que se impõe a jovens escolarizados ansiosos por realização pessoal no interior da laboralidade intensa do mundo do capital.
O novo e precário mundo do trabalho no Brasil é constituído hoje por duas importantes camada sociais da juventude trabalhadora: o precariado e os novos assalariados flexíveis. É claro que existem outras camadas sociais da juventude proletária, tais como os “proletaróides”, ou ainda os “nem-nem” (os que nem estudam, nem trabalham). Entretanto, é a discussão sobre estas duas camadas sociais – o precariado e os novos assalariados flexíveis – que tornará visível a contradição radical que perpassa hoje, mais do que nunca, o capitalismo global. Isto é, a contradição entre a riqueza das possibilidades pressupostas com a ampliação da alta escolaridade e a miséria das perspectivas de realização profissional e desenvolvimento humano no século XXI. Precariado e novos assalariados flexíveis desvelam aquilo que denominaremos “o paradoxo de Ícaro”.
Nos últimos anos produzimos, através do Projeto CineTrabalho, uma série de monografias audiovisuais que expõem os sonhos, anseios e as expectativas frustradas destas camadas sociais da juventude trabalhadora – por exemplo, os video-documentários “Precários inflexíveis”, tratando do precariado em Portugal; e “Jovens bancários”, “Sonhos do ABC” e “Professores do Estado”, tratando dos novos assalariados flexíveis de importantes categorias assalariadas no Brasil (bancários, metalúrgicos e professores de ensino médio). Outros video-documentários – “Galera” ou mesmo “Nutrição” expõem depoimentos de jovens recém-formados diante do dilema entre tornar-se precários ou então, novos assalariados flexíveis.
Como temos salientado, o fenômeno do precariado baseia-se nas mutações orgânicas do fenômeno da juventude trabalhadora como fato geracional nas condições históricas do capitalismo flexível. Por um lado, o sistema educacional alimentou uma serie de expectativas de realização profissional; por outro lado, a crise e derrocada da regulação salarial, que nasceu com o Welfare State, implodiu a implicação emprego-família- consumo, produzindo o fenômeno social da frustração de expectativas para a camada social do jovem proletariado altamente escolarizado – frustração de expectativas que assumiu, política e moralmente, a forma da indignação social. Esta frustração de expectativas do precariado, decorreu da impossibilidade de realização do sonho salarial fordista-keynesiano: emprego estável com estatuto salarial capaz de garantir carreira e perspectivas de consumo (este fenômeno social está mais desenvolvido nos países capitalistas centrais, onde ampliou-se nas ultimas décadas a camada social do precariado).
Portanto, frustração de expectativas e indignação social tornaram-se atributos existenciais da condição de proletariedade do jovem precário altamente escolarizado. A interdição da vida adulta, percebida pelos jovens-adultos precários como perda de futuridade, é um dos sintomas da precarização existencial. O fenômeno do precariado expõe, deste modo, o que podemos denominar frustração salarial, isto é, a juventude altamente escolarizada não consegue se inserir num estatuto salarial estável, capaz de garantir perspectivas de consumo e afirmação social. O que se anseia, nesse caso, é um emprego estável. Não se trata propriamente daquilo que iremos denominar frustração profissional no sentido da realização dos sonhos e anseios profissionais alimentados na etapa de formação. Na verdade, o precariado constituído por jovens altamente escolarizados inseridos em relações precárias de trabalho e vida, anseia, num primeiro momento, pela “cidadania salarial” alienada pelo capitalismo flexível e não propriamente pela realização profissional. A frustração salarial decorre do desemprego ou então, de uma inserção numa ocupação precária – mesmo que seja de acordo com sua formação profissional. A precariedade do estatuto salarial, que não lhe garante carreira ou perspectivas de futuridade, sobrepõe-se, deste modo, ao ideal de realização profissional.
Por outro lado, o fenômeno dos novos assalariados flexíveis possui outro estatuto sociológico, tendo em vista que eles tem emprego estável. Por exemplo, os jovens empregados assalariados altamente escolarizados, inseridos no mundo do trabalho formalizado na década de 2000, não podem ser considerados precários ou pertencentes ao precariado, tendo em vista que têm estatuto salarial estável. Podemos dizer que não manifestam frustração salarial propriamente dita pois possuem emprego formalizado por tempo indeterminado, sendo portadores, deste modo, de direitos trabalhistas e inclusive, em certos casos, tem perspectivas de carreira compatíveis com sua formação profissional. Entretanto, pode-se dizer que, no caso de empregados altamente escolarizados, podem manifestar frustração profissional.
A precariedade dos novos assalariados flexíveis, caracterizada pela inadequação entre ocupação laboral e sonho profissional e também pelo esvaziamento do sentido da ação laboral nas atividades profissionais, expõe o estranhamento como categoria fulcral da critica do capital. Não se trata apenas da nostalgia de adequação à ordem salarial fordista-keynesiana com a obtenção do emprego estável e a cidadania salarial, como se caracteriza, por exemplo, os anseios contingentes do precariado; mas sim, a frustração de realização pessoal por conta da inadequação entre atividade ocupacional exercida e sonho profissional e a agudização do estranhamento decorrente do esvaziamento de sentido da ação laboral de ocupações profissionais altamente especializadas.
O que significa que, no caso dos novos assalariados flexíveis, mesmo que consigam inserir-se em ocupações laborais compatíveis com sua formação profissional, eles não conseguem fugir da frustração profissional tendo em vista que se frustram em virtude do esvaziamento de sentido da ação laboral por conta das novas condições de organização do trabalho. Na verdade, neste caso, trata-se da própria tendência estrutural do trabalho capitalista salientada por Harry Braverman no seu livro clássico “Trabalho e capital monopolista”, que demonstrou historicamente a degradação do trabalho capitalista, não apenas na indústria, mas nos serviços e inclusive nas ocupações profissionais mais especializadas, cuja ação torna-se esvaziadas de sentido, não apenas pelo conteúdo da tarefa em si, mas pela intensificação da ação laboral (gestão toyotista acoplada às novas tecnologias informacionais) que leva a perda de sentido da atividade em virtude do aprofundamento do estranhamento social (novo sociometabolismo do capital e barbárie social).
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* Doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. Coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica.