100 ANOS DA UNIVERSIDADE POPULAR JOSÉ MARTÍ – CUBA

REFORMA OU REVOLUÇÃO UNIVERSITÁRIA?

Fração da Unidade Classista no Andes-SN

“a emancipação definitiva da cultura e de suas instituições não poderá ser realizada senão junto com a emancipação dos escravos da produção moderna que são, também, os títeres inconscientes do teatro cômico dos regimes políticos atuais” (MELLA, 1928)

Os ventos bolcheviques de 1917 e da Reforma de Córdoba de 1918 chegaram como oxigênio para inspirar a rebeldia da juventude cubana no princípio dos anos 1920 na Mayor de las Antillas. A visita do Reitor da Universidade de Buenos Aires, José Arce, em 1922, para conferências na Universidade de Havana sobre a questão do Ensino Superior e as reformas universitárias que estavam ocorrendo na Argentina naquele período, especialmente advindas da Reforma de Córdoba, trouxeram esperanças de que as coisas podiam mudar. Fato este, destacado no Manifesto de los Estudiantes Universitarios de Cuba, de 10 de dezembro de 1922, que convocava a criação da Federação Estudantil Universitária (FEU) em 20 de dezembro.

A efervescência das lutas sociais em Cuba, naquele período, ainda remontavam a luta pela independência de 1895 e a ascensão de classes burguesas singulares: subordinadas à dominação norte-americana e com um certo caráter nacionalista, defensora do liberalismo burguês e partícipe dos governos ditatoriais e advogavam mudanças na estrutura universitária desde que não afrontasse os interesses da dominação burguesa. Ao mesmo tempo, a classe trabalhadora cubana se encharca de princípios Martinianos de libertação e liberdade que, no contexto universitário, irão exigir autonomia e democracia nas esferas institucionais como parte de uma reforma universitária efetiva.

Assim como na Argentina e no Peru, o movimento reformista em Cuba logrou êxito na reforma universitária no sentido de que resultaram em mudanças institucionais importantes e somente foram possibilitadas pelas ações e organização do movimento estudantil. E também como nestes países, os próprios limites de composição social do movimento estudantil estabeleceu barreiras para avançar a luta em caráter revolucionário. As posições predominantes dissociam o meio acadêmico do mundo real, isolando a universidade da vida fora dos muros, como se ao resolver a questão da democracia na instituição incidiria também na democracia da sociedade.

Nesse contexto, surge um dos mais importantes revolucionários latino-americanos, foi protagonista das lutas socialistas em Cuba nos anos 1920 e um importante dirigente do movimento estudantil, se trata de Julio Antonio Mella. Foi uma liderança em toda essa insurreição estudantil e da criação da FEU em 1922, da realização do I Congresso Nacional Estudantil de Cuba em outubro de 1923, da criação da Universidade Popular José Martí em novembro de 1923 e da fundação do Partido Comunista de Cuba (PCC) em 1925. Porém, diferentemente da predominância idealista do movimento estudantil poli-classista, Mella entendia que a reforma não era suficiente para as mudanças necessárias da universidade: “hay mucha palabrería liberal y vacía sobre reforma universitaria, debido a que los elementos que en muchas partes tomaron parte en este movimiento lo eran de la burguesía liberal” (MELLA, 2017, p. 133) e que somente encontraria estas mudanças na transformação da sociedade mesma: “si la reforma va a acometerse con seriedad y con espíritu revolucionario no puede ser acometida más que con un espíritu socialista, el único espíritu revolucionario del momento” (MELLA, 2017, p. 133).

Ou seja, a transformação radical da universidade se daria concomitantemente às transformações da sociedade. Isso não significava ficar esperando a revolução para mudar a educação, mas de criar mediações e sínteses dinâmicas que permitissem levar a universidade a acompanhar e produzir as possibilidades de transformação social. Essa perspectiva revolucionária de universidade não poderia ser diferente, dentre os princípios comunistas que o movem, a não ser de caráter internacionalista e concebida pelas lutas latino-americanas por uma outra universidade.

Como en las universidades rusas de antaño el estudiante se ha lanzado a la lucha social: a la lucha revolucionaria. Desde 1918, en la Córdoba argentina y feudal, hasta 1923, en La Habana antillana y yanquizada, pasando por Chile y Perú, la juventud universitaria ha venido luchando en un movimiento que ha denominado Reforma o Revolución Universitaria. Tiene este movimiento carácter continental (MELLA, 2017, p. 126).

Ao compreender os processos de reformas universitárias que haviam ocorrido na Argentina, Chile e Peru – e também estava em curso em Cuba – Mella aprofunda o caráter proletário das lutas universitárias pela transformação da universidade fundamentando a necessidade de uma revolução universitária.

Lo que caracteriza la Revolución Universitaria es su afán de ser un movimiento social, de compenetrarse con el alma y necesidades de los oprimidos, de salir del lado de la reacción, pasar ‘la tierra de nadie’, y formar, valiente y noblemente, en las filas de la revolución social, en la vanguardia del proletariado. Sin esta guía, sin este afán, no hay revolución universitaria. Podríase definir este magnífico movimiento continental como una batalla en el terreno educacional de la gran guerra de clases en que está empeñada la humanidad (MELLA, 2017, p. 126).

A estratégia de revolução universitária que propunha Mella tem como síntese a Universidade Popular, que não se trata de uma instituição educacional para formar determinado tipo de profissional; se refere à um movimento de possibilidade diante da impossibilidade, de confrontar a alienação da consciência do povo trabalhador para elevar o grau de mobilização e organização da classe trabalhadora, de confrontar o monopólio burguês da cultura em sentido de criar uma nova sociedade por dentro da antiga: “dentro del cascarón de la sociedad actual se va formando la nueva” (MELLA, 2017, p. 128). E para isso, o acesso do povo trabalhador ao conhecimento do mundo sob a perspectiva proletária e revolucionária é fundamental para produzir este novo mundo.

E assim que, em 3 de novembro de 1923, foi criada a Universidade Popular José Martí (UPJM) em Cuba. Encaminhamento do I Congresso Nacional Estudantil realizado um mês antes. No próprio estatuto da UPJM já são explicitados, nos primeiros artigos, o caráter de organização política pelo proletariado e o sentido revolucionário do movimento. Diz o Art 1: “La clase proletaria cubana funda, profesa y dirige la Universidad Popular José Martí”; e no Art. 3: “La Universidad Popular, de acuerdo con los principios enunciados, procurará formar en la clase obrera de Cuba y en cuantos acudan a sus aulas, una mentalidad culta, completamente nueva y revolucionaria” (MELLA, 2017, p. 104-105).

Por seu caráter classista e revolucionário, a UPJM enfrenta diversas dificuldades nos anos seguintes, tanto no confronto à ditadura de Machado, subordinada ao imperialismo norte- americano, como também pela composição social do movimento estudantil universitário.

Mella dizia que a FEU havia se tornado o lugar de “jovens sensatos” e da “ordem”, por sua intenção de pautarem-se pela democracia liberal da política burguesa. Tanto que Mella renuncia a seus cargos na FEU e prioriza o engajamento no PCC e demais organizações da classe trabalhadora para avançar a revolução socialista na qual a UPJM também teria sua importância fundamental.

Em 1927, a ditadura de Machado declara a ilegalidade da UPJM por ser considerada uma instituição que atentava contra a ordem nacional e que buscava organizar uma insurreição para mudar essa mesma ordem. De fato, se podia dizer que era isso mesmo, e torná-la ilegal por um governo ditatorial subordinado ao imperialismo norte-americano e aos interesses de burguesias usurpadoras das riquezas da Ilha, faziam com que Mella afirmasse que a UPJM cumpria seu papel central e que esta atitude da ditadura era um “prêmio” mais para a universidade popular.

[…] la enseñanza de la Universidad Popular José Martí ha insurreccionado a más de una conciencia dormida y domesticada, la ha insurreccionado contra el despotismo político, contra la injusticia económica, contra la dominación extranjera, contra el ‘valor’ de la ignorancia. La declaración de ilegalidad es un galardón más para la Universidad (MELLA, 2017, p. 111).

Exilado no México em 1926 e assassinado pela ditadura em 1929 com 25 anos de idade, a curta vida de Mella se eterniza como o vínculo histórico entre o mártir José Martí e o invencível Fidel. Da luta Martiniana pela independência de Cuba até a Revolução Socialista liderada pelo Comandante Fidel, que emancipou o povo trabalhador da tirania e dominação capitalista, as ações desse revolucionário são decisivas para o avanço da consciência de classe, não apenas no contexto de sua vida e sim na esteira histórica de uma classe que não começa e termina na existência terrena de suas lideranças.

Quase como uma profecia, disse Mella (2017, p. 128) que: “los actos sociales de la Revolución Universitaria en la América Latina son indicios terminantes de la futura transformación política”. E ao recorrermos ao período posterior que culmina com a Revolução Cubana em 1959, estas palavras são ratificadas ainda mais e a Universidade Popular como síntese de transformações, cumpriu com sua função: “de su existencia favorable en los medios obreros y de su lanzamiento a la ilegalidad por la fuerza de los reaccionarios, se desprende que no es su existencia anacrónica ni utópica, sino necesaria y efectiva: ha cumplido una función social” (MELLA, 2017, p. 111).

E assim foi, não por obra divina, senão por obra humana. Na concepção mais profunda de humanidade que se forja em sua libertação emancipadora como projeto de mundo. Das primeiras batalhas pela reforma universitária, criação das organizações do movimento estudantil como a FEU, criação das organizações da classe trabalhadora como o PCC e de sua própria iniciativa educacional como a UPJM, a heróica luta da classe trabalhadora cria, em 1962, a Universidade revolucionária, socialista e dirigida pela classe. Sob o legado de Mella, a lei da Reforma Universitária de Cuba é promulgada em 10 de janeiro de 1962, dia em que a morte de Mella completava 33 anos, com um traço fundante de uma concepção socialista de universidade latino-americana: a Universidade Popular.

Neste dia 3 de novembro de 2023, saudamos o centenário da Universidade Popular José Martí e a Revolução Universitária que a criou.

Viva a Revolução Cubana! Viva a UPJM!

Referências

MELLA, Julio Antonio. O conceito socialista da Reforma Universitária – 1928. Tradução: Luiz Bernardo Pericás. In: Mouro – Revista Marxista – Núcleo de Estudos d’O Capital – Ano 11 – No. 14 – Janeiro 2020.

MELLA, Julio Antonio. Textos Escogidos. Compilação de Julio Cesar Guanche. La Habana:

Ediciones La Memoria, Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2017. v. Tomo I